Os físicos de Mileto

Tal como a conhecemos hoje a Filosofia é filha da Grécia. Grande parte das introduções à Filosofia e dos cursos de Filosofia começam, naturalmente, tratando dos chamados jônicos. É natural que o iniciante se espante diante da afirmação de que a Filosofia começou com Tales de Mileto, no século VI a.C.. Por que nos espantamos? Ora, como a Filosofia, essa coisa tão interessante, pode ter começado com a hipótese de que “o princípio material de todas as coisas é a água”?

Eu já me perguntei (e também a alguns professores) o que é que Tales queria dizer com isso. As respostas foram insatisfatórias. Eu continuava sem entender. Eu, que tento levar a Filosofia a sério, não podia começar seu estudo com esse grande enigma. Do que Tales estava falando?

Depois de ter lido um bocado — e meditado outro tanto — as respostas começam a aparecer. A noção de cosmos, para os gregos, é muito importante. O mundo nos aparece ordenado, sujeito a uma lei. Cosmos traz a ideia de totalidade, unidade. Uma coisa intrigava os gregos: os opostos — dia e noite, frio e calor. A pergunta que provavelmente deu início às especulações jônicas foram essas: para além da diversidade de todas as coisas há uma base comum? Em outras palavras, há algo que é tão frio e tão quente quanto o são o frio e o quente? Há algo que seja a origem tanto do dia quanto da noite?

A resposta dos jônicos foi sim. Sim, existe. Essa resposta preliminar determinou a busca que deveria ser empreendida: o que há de permanente no fluxo das coisas? A concepção dos três filósofos jônicos sobre o que é essa base comum (e, portanto, também a origem dos fenômenos) são diferentes. A propósito, arché, ou princípio, é um termo que, segundo John Burnet, é aristotélico. Os milésios falavam em physis — como aquilo, de natureza permanente, de que é feito o mundo.

Para Tales de Mileto, o princípio material de todas as coisas é a água. O que quer dizer isso? Que as coisas são meras manifestações concretas desse princípio único; que tudo é um tipo de água (ou um caso do princípio-água).

Gostaria de entender melhor o que ele quis dizer com isso e de onde tirou essa sua hipótese de trabalho. Os historiadores da Filosofia também gostariam — embora eles façam conjeturas mais ou menos aceitáveis sobre e origem e o fundamento das ideias de Tales, que nos chegaram indiretamente por comentaristas antigos.

A contribuição de Anaximandro é um pouco mais trabalhada. Para ele o princípio de tudo é o indeterminado, o ilimitado, o chamado ápeiron. A origem de tudo é um negócio magnânimo, que provoca assombro! Segundo ele, as coisas são engrendradas por uma segregação. Ocorre que isso é uma injustiça (adikía), um predomínio de um contrário sobre o outro. Por isso há o predomínio de coisas individuais, que sempre sinalizam um dos opostos. A predominância de um ou outro dos opostos é uma “injustiça”, pela qual eles devem dar reparação ao outro, no devido tempo. Há necessidade de que tudo volte ao seu fundamento último: o ápeiron, onde os contrários não se tiranizam. Isso ocorrerá através do tempo. O tempo é a forma desse acontecer, desse retorno. O ápeiron é “sempre novo e imortal”.

O ápeiron, o infinito, é algo diferente dos elementos. Nesse ponto, a sacada dele já é um passo a mais em relação à concepção de Tales: pois como a água pode ser o princípio de todas as coisas se ela é uma das coisas?

O terceiro jônico é Anaxímenes. Para ele o princípio de tudo é o ar, de onde nascem as coisas e para onde voltarão quando se corromperem. O modo concreto de formação das coisas é a condensação e a rarefação. À substância primeira, suporte da diversidade, em constante mutação, das coisas, o ar acrescenta um princípio de movimento. Se o ar é rarefeiro, o princípio de movimento que ele acrescentará engrendrará o fogo; se o ar é condensado, o princípio fará nascer nuvens, água, terra, rocha, tudo segundo o grau de densidade.

Anaxímenes salvou a unidade da substância primordial ao dizer que todas as diversidades se devem à presença de maior ou menor quantidade dela em um determinado espaço. Com isso já não é preciso fazer da substância primordial algo distinto dos elementos. O princípio de todas as coisas está… em todas as coisas, materialmente.

O mundo de Anaximandro é resultado de uma divisão no seio do ápeiron (as coisas têm um débito com sua origem, são capengas, são apenas uma face da moeda); o mundo de Anaxímenes é fruto da participação da substância primordial na essência das coisas mesmas, em variados estados de rarefação e condensação. O princípio de tudo desce e entra no jogo da diversidade. Teria nascido no seio da escola jônica, entre Anaximandro e Anaxímenes, a primeira disputa entre idealistas e realistas?

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