Pitágoras e os assim chamados pitagóricos

Em torno de Pitágoras há um misto peculiar de genialidade científica e de ascetismo. Gênio rigoroso, líder de uma sociedade secreta ou um intelectual com pretensões políticas? Pitágoras é, definitivamente, um homem em torno do qual há muitas controvérsias.

Suas influência política talvez decorra naturalmente de sua capacidade especulativa e de seu provável magnetismo pessoal. Não nos importa tanto entrar nessa questão. Basta dizer que sua ideia de dar asilo político a refugiados estrangeiros custou a antipatia do governo de Crotona, na Itália, que de lá os expulsou violentamente.

Os relatos sobre a vida de Pitágoras são uma colcha de retalhos. Historiadores antigos, discípulos, biógrafos, todos eles são utilizados hoje pelos historiadores da Filosofia em busca de montar esse complicado quebra-cabeças que é o seu perfil pessoal e a generalidade de sua doutrina. É provável que tenha feito um intercâmbio intelectual através de viagem ao Egito. Comenta-se que foi o primeiro homem a chamar de filósofos os que buscam a sabedoria.

Platão e Aristóteles citam Pitágoras e os pitagóricos com bastante reserva e por vezes veladamente. Cogita-se que essa reserva se deve às notícias que atribuíam a Pitágoras a realização de estranhos “milagres” e a uma possível má-fama que as especulações em torno desses fatos imprimiam na biografia do chefe da confraria religiosa pitagórica. Ora, a Academia e o Liceu eram uma tentativa de levar a especulação filosófica a sério; e a reputação de Pitágoras — e talvez nem tanto o próprio, nem suas doutrinas, que eram respeitados — poderia levá-las ao descrédito. Nesse sentido, Pitágoras seria o mais junguiano, por assim dizer, dos filósofos gregos antigos.

Na escola pitagórica, o sistema era bruto. Havia uma disciplina ascética, com regras detalhadas sobre a conduta dos membros; e um conjunto de especulações em torno do número.

Falemos brevemente sobre o ascetismo. Pitágoras foi o primeiro a falar da Filosofia como um modo de vida e a mostrar a importância da Ética para a busca da verdade. Também por isso os pitagóricos levavam uma vida quase monástica, com regras alimentares e muitos interditos ou tabus, tais como “ao levantar-se da cama, desfaça a marca do corpo no colchão” ou “não coma o pão se ele estiver inteiro” — que hoje não nos parecem mais que esquisitices irracionais.

Na escola, de caráter nitidamente iniciático, havia um caminho a percorrer, com duas orientações básicas: os acusmáticos e os matemáticos. Entre uma fase e outra, o iniciado era estimulado a manter o silêncio por alguns anos, durante os quais devia apenas ouvir as lições, sem dar palpite sobre o que quer que fosse.

É possível que os pitagóricos tenham sido os primeiros a distinguir as três vias. Explicam-na a metáfora dos jogos olímpicos, aos quais vão três tipos de pessoa: as que vão para comprar e vender; as que vão para competir; e por último as que vão para assistir (theorêin). Para Pitágoras, a maior das purificações era a sabedoria. E para alcaçar a sabedoria era preciso saber tratar o corpo e a alma de modo adequado. A Filosofia, nessa ordem de ideias, exige uma conduta compatível com a busca da verdade. Nesse sentido, o problema da vida suficiente também leva a uma disciplina especial — a contemplação. Aparece com eles o tema da libertação, do homem suficiente, que se basta a si mesmo. Além disso, para os pitagóricos era preciso superar o corpo, que é o túmulo da alma, sem contudo perdê-lo. Os ritos órficos ajudam a dar vitalidade à alma, a entusiasmá-la.

Diz-se que Pitágoras reconheceu no latido de um cão a voz de um amigo falecido. Para ele havia um parentesco entre todos os seres vivos; entre, por exemplo, o homem e os animais. Esse é o pano de fundo da doutrina da transmigração das almas, que ele subscreveu. Do orfismo os pitagóricos herdaram a noção de que é possível (e preciso) livrar-se da “roda do nascimento” por meio da purificação. John Burnet sugere que eles trabalharam melhor a ideia da purificação: usavam, por exemplo, a música para purgar a alma, assim como a medicina para o corpo.

A maior contribuição de Pitágoras para a Filosofia, porém, é sua doutrina dos números. Ele descobre um novo tipo de ente, os números e as figuras geométricas — que não são corporais, mas apesar disso são reais. Isso amplia a noção de ente. Vão além: descobrem que o ser vai coincidir com o ser dos objetos matemáticos. Os números e as figuras são as essências das coisas. Os entes são por imitação dos objetos da matemática.

A matemática pitagórica não é uma técnica operatória, é antes a descoberta e construção de novos entes, imutáveis e eternos, diferentemente das coisas variáveis e mortais” (Julián Marías).

A Tetraktys é uma figura geométrica em forma de triângulo composta por dez pontos. A base possui quatro pontos; a segunda linha, três; a terceira, dois e a quarta, um. Comenta-se que os pitagóricos juravam perante essa figura, que julgavam sagrada. Com efeito, para eles, o número 10 era a perfeição; a década tinha várias propriedades únicas.

Pitágoras descobriu relações numéricas entre os intervalos musicais perfeitos: os intervalos de 4a, de 5a e de 8a são representados pelos números 1/2, 2/3 e 3/4 — o que remete também à estrutura da Tetratkis e confirma sua perfeição. Ora, se os sons musicais podem ser reduzidos a números por que não pode tudo o mais?

Mas se os números são o princípio de todas as coisas, como se operacionaliza a criação de tudo o que existe? “Os pitagóricos sustentavam que havia um ´sopro ilimitado´ fora dos céus, que era inalado pelo mundo. (…) Depois de a primeira unidade se ter formado — como quer que isso tenha ocorrido –, a parte mais próxima do Ilimitado começou a ser inspirada e limitada, e que é o Ilimitado assim inalado que mantém as unidades separadas entre si. Ele representa o intervalo entre elas. Essa é uma forma primitiva de descrever as quantidades descontínuas” (John Burnet).

Ao menos em princípio, isso sugere uma visão inteiramente nova da relação entre os ´contrários´ tradicionais. Se a observação dessas proporções possibilita atingir uma consonância perfeita (harmonia) do agudo e do grave, é claro que outros contrários podem ser hamonizados da mesma forma” (John Burnet). Na origem de tudo estão também os dez pares de opostos.

Existem muitas semelhanças entre os números as coisas; e os pitagóricos faziam muitas analogias entre ambos. Como isso acontecia, exatamente? Veja bem. O número, para os pitagóricos, era representado por um conjunto de pedrinhas ou de pontos. Como registra Giovanni Reale, o número era então visto, ao mesmo tempo, como figura. Os pontos ocupavam espaço, como massas, daí que os números também eram vistos como figura sólida. Com isso se compreende como se dava a passagem, de mão dupla, do número às figuras e às coisas. Diz-se que um determinado pitagórico indicava o número de toda sorte de coisas, de cavalos, de homens, colocando pedrinhas de um certo modo.

A Filosofia de Pitágoras foi levada a consequências maravilhosas no livro Pitágoras e o tema do número, do filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos. Para ele, Platão, em linhas gerais, é resultado do desenvolvimento genial das filosofias que o mestre da Academia herdou de Pitágoras e de Sócrates.

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