Como Sócrates recebeu as doutrinas dos ‘filósofos físicos’
Porque a filosofia de Sócrates não foge à regra, pode então ser expressa pela fórmula clássica A não é B, mas C. Isso quer dizer que as filosofias não nascem do nada, mas sim do confronto com as filosofias ou com as concepções de mundo que vieram antes.
E antes de Sócrates vieram, por definição, os pré-socráticos. Os primeiros deles são geralmente chamados de filósofos físicos — que eram uma mistura de cientistas e ascetas que refletiam sobre a natureza e sobre o fundamento de tudo o que existe. Perguntavam-se como tudo começou e qual é a razão de unidade de todas as coisas — ou seja, qual é a unidade por trás da multiplicidade de tudo quanto há. Tales de Mileto, o primeiro dos pré-socráticos, era conhecido como um dos Sete Sábios. Para esses cientistas ascetas a sabedoria era a posse da verdade sobre a natureza — natureza que há de ter estrutura própria e permanente. Para eles, as explicações mitológicas já não eram suficientes; era necessário ir além. Essa busca pelos fundamentos, essa busca pelo conhecimento evidente, foi que os levou a jogar em solo grego as primeiras sementes da filosofia. A propósito, remeto-lhes a outro texto em que falei um pouco sobre a filosofia dos milesianos.
Pois bem. Sócrates iniciou suas pesquisas em Atenas em uma época em que as pesquisas — e os resultados parciais — dos físicos já não despertavam o mesmo interesse. Já naquela época, as concepções dos filósofos físicos já acumulavam contradições. Os verdadeiros intelectuais já não se interessavam pelo estudo da natureza. Homens como Protágoras buscavam outros temas através de outras abordagens.
Se uma figura vai murchando, outra, sorrindo, se propõe. O marcado desinteresse pelas doutrinas naturalistas coincidiu com determinadas mudanças políticas que estimulavam a formação de consensos em torno da coisa pública. A busca de consensos fomentava discussões a respeito da melhor legislação e da conduta pessoal adequada. Em razão da prosperidade momentânea de Atenas, para lá convergiam intelectuais das mais variadas regiões. Por conta disso, as discussões políticas se enriqueciam em diversidade à medida em que desconsideravam, na busca das soluções, a tradição e os costumes ancestrais. A inteligência ganhou então uma nova função, precisamente a de engendrar discursos capazes de modificar praticamente a vida da cidade. Em bom português, isso quer dizer que a crise das doutrinas dos filósofos físicos coincidiu com o crescimento do interesse pela atividade retórica dos sofistas. Foi nesse contexto que Sócrates amadureceu seu pensamento, transcendendo o método e as soluções dadas pelos primeiros e desmascarando, de modo quase sempre genial, os segundos.
Sejamos mais precisos. O que Sócrates encontrou e o que desenvolveu? Os problemas que atormentavam os pensadores gregos eram dois: o problema da geração e corrupção e o problema do uno e do múltiplo.
Em linhas gerais, a respeito da geração e da corrupção: os físicos da época diziam que a causa das mudanças são os agentes físicos e suas variadas maneiras de ligação e interação. Para eles, o fundamento da ordem era de ser encontrado dentro da própria natureza. Nesse particular, Sócrates foi além e, sob a inspiração de Anaxágoras (como diremos adiante), introduziu na filosofia a concepção teleológica ou finalista da ordem do universo: os acontecimentos e as coisas apontam para a realização de uma finalidade de valor absoluto. Segundo a concepção socrática, o mundo não é feito tão somente de necessidades mecânicas, mas se trata de um processo em direção a um fim que é bom e — na linha do que intuiu Anaxágoras — racionalmente planejado.
Sobre a segunda preocupação dos pensadores gregos. Na busca da conciliação entre o uno e o múltiplo, Sócrates idealizou um método dialético de discussão. Através de correções e de generalizações sucessivas, conduzia a si e a seu interlocutor a um grande número de princípios gerais — que são os gêneros — que respondem a diversas questões sem contudo dissolver a tensão. Platão avançará nesse ponto, como veremos aqui em um futuro breve.
Não é correto dizer que Sócrates deu continuidade à doutrina dos físicos. Em verdade, ele repudiava essas pesquisas que buscavam conhecer algo que estava além das forças humanas; esforçavam-se por conhecer os segredos do cosmos e se esqueciam do homem. Isso, para Sócrates, era imperdoável, pior que bater na própria mãe. Quem se dedica a tais pesquisas sobre a natureza acaba esquecendo-se de si mesmo — e aquele que não se conhece está muito perto da loucura. Mas não é só: ocorre que o conhecimento gerado pelos filósofos físicos era dogmático e suas bases não resistiam a um exame sério.
Apesar desse repúdio quase geral, Sócrates passou parte de sua juventude lendo e pesquisando as doutrinas de seus antecedentes. E no meio do caminho topou com a doutrina de Anaxágoras acerca do nous. Para esse filósofo, a razão é a causa de toda ordem natural e de toda lei, inclusive da própria ação humana. Diante dessa concepção, Sócrates teve a intuição de que o universo inteiro é uma encarnação de uma ordem racional — e de que a vida humana propriamente conduzida pode ser a encarnação de um plano racional coerente. Porém, a paixão de Sócrates por Anaxágoras durou pouco; frustrou-se com sua doutrina porque ele, como um jogador que chega com a bola na grande área e não a chuta para o gol, não deu pleno desenvolvimento à sua tese: não chegou a explicar como a inteligência operava, no universo, ordenando todas as coisas para o melhor. Isso levou Sócrates a tomar a bola para si e a buscar um método para alcançar o que Anaxágoras não tratou: na picada aberta por esse e também por Diógenes de Apolônia, Sócrates concebeu a divindade como inteligência ordenadora. (Embora essa filiação intelectual que acabo de mencionar pareça evidente a muitos historiadores da filosofia, a verdade é que Henri Bergson, por exemplo, não acredita que o nous de Anaxágoras tenha tido influência sobre a noção socrática de Providência, pois haveria pouco nexo entre ambas — segundo ele, o nous de Anaxágoras é um princípio físico enquanto que a Providência de Sócrates tem conotações morais às quais devemos dar ouvidos).
Em uma imagem, podemos dizer que Sócrates sentou-se na mesa dos filósofos físicos, ouviu-lhes a conversa e de lá se retirou, embora relativamente frustrado, com algumas linhas de pesquisa para futuro desenvolvimento. Chegando na praça, encontrou-se com os sofistas, empolgados com a nova atividade de ensinar aos jovens a fazer amigos e a influenciar pessoas. Deu-se a conversar com eles, na superfície se mostrando interessado em suas doutrinas, mas a sério confrontando cada uma de suas pretensas teses e demonstrando que os caminhos por eles trilhados não poderiam levar ninguém a se tornar uma pessoa melhor.
Quais eram os pontos de divergência entre Sócrates e os sofistas e por que, apesar das diferenças, Sócrates chegou a ser confundido com eles? Tratarei disso no próximo post.
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