Um pouco de Sócrates, para entender Platão

Para estudar Platão, é preciso entender Sócrates. A filosofia foi de tal modo influenciada pelo método concebido por Sócrates que os filósofos que atuaram antes dele nas cidades gregas são conhecidos pela referência a seu nome. Os filósofos pré-socráticos não chegaram a sair do solo. O plano de voo preparado por Sócrates, por sobre fragmentos das teorias de seus antecessores, permitiu o ensaio de uma primeira decolagem. E todos viram que era bom. Platão e Aristóteles levaram a aeronave para cima das nuvens. Sem Sócrates, porém, nem um nem outro teriam sido capazes de desenvolver sua filosofia.

É verdade que essa metáfora aeronáutica não se afina bem com o testemunho que Cícero deixou de Sócrates, segundo o qual ele trouxe a filosofia do Céu à Terra. É verdade que Sócrates se frustrou com as pesquisas dos físicos de então, em especial com Anaxágoras, e incentivado por uma espécie de anjo da guarda idealizou seu projeto educativo voltado para o homem de carne, osso e discernimento. Essa estranha mistura de uma filosofia terrena conectada aos céus foi aperfeiçoada por Platão. Sócrates trouxe a filosofia do Céu à Terra e tornou possível que Platão, através de seu gênio filosófico, promovesse a segunda navegação em direção a um Céu mais alto e mais compreensível.

É preciso, pois, começar com Sócrates. Os manuais de História da Filosofia nos contam quem é o homem: nascido em 469-470 a.C., filho de Sofronisco, um escultor, e de Fenarete, que foi lavadeira e também parteira; parece ter tido duas mulheres, Mirto e Xantipa, e três filhos com a segunda. Foi um brilhante soldado. Conta-se que em campo de batalha chegou a salvar a vida de Xenofonte (seu futuro biógrafo) e Alcibíades (uma de suas maiores frustrações pedagógicas). Além disso, parece que herdou bens suficientes para se manter durante a vida sem grande dificuldade. Veio da camada média da burguesia local, de gente que tinha temor de Deus e senso de ordem. Pertencia ao estamento dos artesãos, e a eles e à sua arte sempre fazia referências em suas discussões, a título de ilustrar sua argumentação com exemplos de um saber circunscrito a certos objetivos.

Durante toda sua vida, Sócrates frequentou os círculos intelectuais de Atenas. Foi amigo de Eurípedes, próximo da família de Tucídides e esteve no círculo íntimo de Péricles. Entre seus alunos estavam aristocratas conspiradores como Alcibíades e Crítias, circunstância que contribuiu para fomentar sua fama de antidemocrata. Se é verdade que ele não se simpatizava com a participação popular nas assembleias e nos tribunais, também é verdade que, obediente às orientações de seu oráculo pessoal, afastou-se da política institucionalizada.

Sua juventude e primeira maturidade se passaram antes da Guerra do Peloponeso, na época de Péricles. O ter vivido de perto a transição de uma Atenas próspera e respeitada para uma cidade decadente fê-lo refletir sobre as causas dessa mudança. Pela dissolução das forças vitais em Atenas ele culpava em parte os sofistas, que com seu ceticismo minavam a fé na religião tradicional, e com seu cosmopolitismo dissolviam a autoridade das leis e dos costumes.

Para Xavier Zubiri, Sócrates não era propriamente um intelectual de sua época, como eram, por exemplo, Anaxágoras, Empédocles, Zenão e Protágoras. Seu declarado não-saber não se amoldava bem ao arquétipo do sábio da época. Mas é certo que criou um novo tipo de vida intelectual que, ao fim e ao cabo, tornou possível a filosofia como a conhecemos hoje.

Na sua juventude, Sócrates se interessou pela filosofia de Anaxágoras, através de seu discípulo Arquelau (que o sucedeu depois de sua debandada de Atenas). Teofrasto disse que Sócrates foi um membro da escola de Arquelau. Parece que leu também Heráclito. Ademais, sua convivência com os sofistas também o colocou em contato com Empédocles, com Parmênides e com os atomistas. Em seu círculo de alunos havia alguns pitagóricos. Da filosofia de Anaxágoras aprendeu que a razão (nôus) era causa de toda lei e de toda ordem natural, inclusive da ordem e da coerência da ação humana. Para Sócrates, isso indicava que o universo, inclusive a vida humana, era uma encarnação de um plano racional coerente. Por isso todas as coisas têm seu próprio lugar dentro da ordem cósmica. Porém, logo se frustrou porque viu que Anaxágoras não desenvolveu adequadamente seu insight e não extraiu dele as consequências que eram de se esperar. Seja como for, essa semente foi plantada na alma de Sócrates, solo fértil em que seria desenvolvida na esteira de seu método.

Até então, Sócrates era um pesquisador curioso e crítico como tantos outros que andavam pelas ruas e pelos ginásios de Atenas. Iniciou publicamente sua atividade intelectual por volta dos 35 anos. Ocorre que sua vida mudou quando um amigo seu, chamado Querofonte, perguntou ao Oráculo de Delfos se havia em Atenas alguém mais inteligente que Sócrates. Não, não havia, foi a resposta do Oráculo. Isso aconteceu antes de seus quarenta anos. Ao saber disso, Sócrates ficou sem entender. Como confiava no Oráculo, tentou compreender de que sabedoria ele falava. E começou a interrogar os homens sábios de seu tempo. Logo percebeu que eles não sabiam o que diziam saber e menos ainda dominavam os fundamentos de seu saber. Ora, ele concluiu: eles não sabem, eu também não sei. Mas ao menos eu sei que não sei, e isso já é saber alguma coisa.

Sócrates era eventualmente orientado por um oráculo particular (daimónion), uma entidade de caráter aparentemente religioso que não dava orientações positivas; o daimónion de Sócrates somente lhe recomendava abster-se de determinadas atividades e condutas. O afastamento de Sócrates da vida política ateniense, por exemplo, é atribuído a uma orientação de seu oráculo.

A atividade filosófica de Sócrates é uma atividade de confronto que levou à sua condenação criminal. Suas críticas aos filósofos físicos e, principalmente, aos sofistas, ajudaram a delinear os contornos de seu método e as linhas gerais de sua doutrina. Sócrates não escreveu nada e não se atribuía nenhuma descoberta filosófica. Segundo registrou em seu discurso de defesa, a única capacidade que reconhecia em si era a de fazer bons os homens que o procuravam. Para tanto iniciava pelo exame das opiniões — como nos ginásios, antes da prova, o médico examinava o atleta. Essa era, inclusive, a missão que, segundo diz, recebeu do Oráculo de Delfos: desmascarar os pseudo-intelectuais de Atenas e lhes colocar na buscar da melhor vida humana possível. O conhecimento de si é meta e instrumento da melhor vida, já que ignorar-se é estar bem perto da loucura.

No diálogo Teeteto há páginas belíssimas sobre a sua capacidade de dar à luz o conhecimento que seu interlocutor gerava dentro de si próprio. Essa é a sua única capacidade: a de ajudar aos outros a compreender o mundo — capacidade que só pode ser exercida com quem já está grávido do conhecimento.

À distância em que estamos de Sócrates ele nos parece uma personalidade forte e coerentemente voltada à busca da verdade no meio de seus concidadãos atenienses. Não nos é possível, sem esforço, perceber alguns traços aparentemente contraditórios de sua personalidade. Esses traços levaram Giovanni Reale a compará-lo a uma herma bifronte: seu não-saber parece prova de sua ignorância e ao mesmo tempo é uma via de acesso à autêntica sabedoria; sua mensagem parece um conjunto de regras morais mas em verdade abriu às portas para a segunda navegação operada por Platão; sua dialética parece heurística, mas foi o primeiro impulso em direção à lógica científica. Nele se mesclam ação e contemplação; seu ensinamento é prático, voltado ao homem em seu cotidiano, mas ao mesmo tempo é um teorizador; tem ares e postura de um aristocrata, porém frequentava as praças e ginásios e conversa com qualquer um; tratava de assuntos seriíssimos, mas não deixava de ser um gozador. Por fim, dizia cumprir uma missão a ele dada pela divindade e ao mesmo tempo pregava o livre exame de si mesmo; partia de um projeto sobrenatural ao tempo em que utilizava a razão em sua atividade filosófica.

Tais aparentes contradições não nos devem assustar: é que os grandes homens não cabem em definições pré-estabelecidas e escapam da burocracia dos catálogos. Eles trabalharam sobre seu caráter e o resultado é uma fórmula inédita, até então desconhecida. Os discípulos de Sócrates (chamados socráticos menores) colheram de seu convívio parte de seus ensinamentos, trabalharam-nos à luz de seus próprios projetos e fundaram escolas, geralmente conhecidas como escolas socráticas. Entre tantos socráticos, não há dúvida: Platão ficou com a melhor parte e a partir da forte personalidade de seu mestre desenvolveu sua magnífica obra.

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