Uma Nova História da Música (Carpeaux): Barroco na Alemanha, França, Inglaterra; A Homofonia na Ópera e na Igreja

Esta postagem traz parte da seleção de obras musicais incluídas por Otto Maria Carpeaux no Apêndice B de seu livro Uma Nova História da Música (2ª Edição, revista e aumentada, Livraria José Olympio Editora). Acesse o arquivo inaugural aqui.

BARROCO NA ALEMANHA, FRANÇA, INGLATERRA

Heinrich Schuetz (1585-1672)

Discípulo de Monteverdi, talvez o maior gênio da música propriamente barroca.

Em tempos melhores, Schuetz talvez não fosse muito inferior a Bach; mas o adjetivo “melhores” não alude só aos horrores de guerra. Schuetz nasceu e viveu numa época de experiências e experimentos. Quando acertou, acertou melhor que Monteverdi. Mas a maior parte das suas obras, mais que as do veneziano, só têm importância histórica. Em sua grandeza há algo de arcaico, de inacessível, como de uma grande raça extinta. Não voltou, com sua obra total, a fazer parte da música moderna.

* Psalmen Davids (1619). A influência veneziana é evidente aqui, mas o espírito é outro: é o da devoção alemã; obra para dois ou mais coros.

* Auferstehungshistorie (História da Ressurreição, 1623). Considerada, por alguns, a obra maior do compositor; ainda fortemente monteverdiana; declamação dramática, um pouco monótona, do texto evangélico, interrompida por coros de força assombrosa.

* Symphoniae Sacrae I (1629), Symphoniae Sacrae II (1647) e Symphonie Sacrae III (1650). Três coleções; superiores a tudo que, em música sacra, nos deram os dois Gabrieli e o próprio Monteverdi: pela expressividade dramática da melodia cantada, que no entando nunca se desvia para o terreno da ópera, sempre guardando a dignidade dos textos bíblicos; e pelo brilho quase mágico do acompanhamento orquestral. Nem todas as obras são de igual valor. O grande salmo In te, Domine, speravi (1629); a grandiosa lamentação Fili mi, Absalon (1629); a emoção intensa de Saul, warum verfolgst du mich? (Saulo, por que me persegues?, 1650); e o sereno Hino de Simeão, Nunc, Domine, dimittis servum tuum in Pace (1647): eis os frutos maduros da música sacra veneziana, mas saturadas de devoção luterana, mais pessoal. De inspiração diferente é o Magnificat (1647), de delicioso sabor folclórico alemão, uma antecipação da arte de Bach.

*Matthaeuspassion (1666). Obra de estilo deliberadamente arcaico, apesar da dramaticidade dos recitativos e coros; é escrita a capela, sem acompanhamento, como se o velho quisesse expiar os pecados e castigos merecidos.

Jean-Baptiste Lully (1632-1687)

Thésée (1675). Uma das três óperas mais admiradas do compositor; apesar de tudo o que querem dizer os musicólogos, não são obras vivas ou que poderiam, um dia, ressurgir para voltar ao repertório. Mas sua importância histórica é grande.

Henry Purcell (1658-1695)

Sua ópera é um último e retardado efeito do estilo monteverdiano. É o maior músico de sua época. Sua morte prematura, com 37 anos de idade, teria sido perda menor para a arte, se tivesse encontrado em vida as formas musicais de que seu gênio precisava. O destino condenou-o a experimentador, a precursor.
* Dido and Eneas (1698). Ópera verdadeira, que voltou a aparecer no repertório moderno; obra belíssima, embora mais interessante pelos pormenores do que em conjunto. É pendant musical da “tragédia heróica” da Restauração, dos Dryden e Otway, que foi tentativa menos bem sucedida de síntese do teatro elisabetiano e do classicismo francês. A tentativa de síntese do estilo de Monteverdi com as qualidades dramatúrgicas próprias do teatro inglês também deu uma mistura algo heterogênea, embora cheia de colorido heróico e erótico. Nota-se a forte expressão dramática nos recitativos, o uso do folclore inglês nos coros, a preferência pelos ritmos de dança (influência de Lully!). Em certos momentos se pensa em Gluck. A ideia de transplantar Virgílio para os campos ao lado do Tâmisa resultou em fusão de elementos classicistas e nacionais, quase uma antecipação do romantismo. Essa solitária obra-prima barroca é provavelmente a maior obra da música inglesa.
* Te Deum (1694). Da música sacra do compositor, essa obra ainda sobrevive; os corais ingleses ainda costumam cantar no Natal; é música concertante, parecida com a forma da cantata bachiana, antecipando os efeitos de Handel, mas sem atingi-los.

A HOMOFONIA NA ÓPERA E NA IGREJA

Alessandro Scarlatti (1659-1725)

Criador de uma nova ópera, do gênero que os franceses e os iltallianos costumam, até hoje, chamar de “lírico”.

Suas numerosas óperas, famosas durante a sua vida, foram logo esquecidas. Os compositores do século XVIII não esperavam, aliás, outro destino das suas obras; escreveram para determinada oportunidade, mas não para ficar no repertório.

É o criador da ária “melodiosa”, da ária da qual o ouvinte guarda na memória a melodia, embora não pudesse cantá-la.

Era gênio. Sua importância histórica é de primeira ordem, inclusive para a solução de um dos mais graves problemas da música barrôca: de maneira assistemática, intuitiva, Scarlatti já se mantém dentro dos limites das tonalidades modernas e da separação rigorosa entre tom maior e tom menor. Antecipa os sistemas do Cravo bem temperado, de Bach, e do Traîte d’harmonie, de Rameau. Mas

* Rosaura (Ópera, 1690). (Trecho)

* Mitridate (1707). A ária Cara Tomba, desta ópera, impressionou tanto o grande Bach que a copiou para seu caderno de notas. E Mitridate realmente é uma obra-prima, também pela expressão dramática nos recitativos.

* La Vergine addolorata (1717). (Parte 2) Há nesta obra certas árias a propósito das quais já foi lembrado o nome de Bach. Mas são obras teatrais.

Giovanni Battista Pergolese (1710-1736)

Já não é chamado, hoje em dia, de “Mozart italiano”. Mas foi, certamente, um gênio precursor.

* La serva padrona (1733). Ópera autenticamente italiana e vivamente cômica. É uma pequenina obra-prima, com apenas dois papéis: a criada graciosa e astuta que, com truques inofensivos e alegres, conquista o amor do seu patrão. E é, pela primeira vez, uma ópera baseada no folclore musical e nos costumes da Itália viva. Muitos anos depois da morte de Pergolese, em 1752, uma companhia italiana representou a Serva padrona em Paris, com imenso sucesso; tem tido prole numerosíssima: é o modelo de toda a ópera cômica italiana, francesa e espanhola.

* Stabat Mater (1736). Escreveu para a irmandade dos Cavalieri della Vergine de’dolori. Grande elegia religiosa, em estilo mediterrâneo. Obra até hoje geralmente conhecida e muito executada. E com razão. Pode parecer-nos sentimental, de pouca profundidade emocional. Mas é de intensa inspiração lírica. Certo trecho, o “Quando corpus morietur, fac ut animae donetur Paradisi gloria“, é de beleza mozartiana. O Stabat de Pergolese deve sua fama aos músicos e musicólogos alemães do século XVIII, muito sentimentais e cheios de saudade do Sul mediterrâneo que imaginavam como um paraíso de beleza e inocência. Alguns censuram nesta obra a “leviandade” melódica de um trecho como “Inflammatus et accensus“, que lembra irresistivelmente a verve rítmica da ópera cômica. De toda a música sacra italiana daquela época só o Stabat Mater de Pergolese continua vivo, graças à colaboração de várias circunstâncias casuais.

Salve Regina (1736). O compositor morreu logo depois de ter escrito as últimas notas dessa obra. É música quase fúnebre, de devoção elegíaca, para lazzaroni napolitanos e suas mulheres e filhos, gente esfarrapada e no entanto feliz em sua fé simples.

Trio-sonatas (1731). O estilo em que se podiam escrever igualmente música sacra e ópera cômica também serviu bem para insuflar algo de “cantabilidade” napolitana aos instrumentos; essas trio-sonatas antecipam algumas qualidades características da música de Haydn.

Emmanuele de Astorga (1680-1757)* Stabat Mater (1707). Possui maior expressividade dramática e superior arte polifônica (para alguns, se comparado com o Stabat Mater de Pergolese.Giacomo Carissimi (1605-1674)

Seus oratórios, pequenas obras dramáticas sobre textos bíblicos para serem cantadas sem cenário, enquadram-se entre os instrumentos propagandísticos da Companhia de Jesus, assim como o teatro escolar dos padres.

* Jephte (1650). Um de seus doze oratórios; é uma obra agradável, edificante, elevada e vivamente dramática. Mas não há motivo para falar, como já se fez, em “Handel do século XVII”.

Agostino Steffani (1655-1728)

A ele pertence a posição central entre os compositores sacros da época, embora, a rigor, só uma obra dele se enquadre na evolução do gênero: é seu Stabat Mater. Foi nobre prelado veneziano que serviu à Santa Sé como diplomata na Alemanha, em Munique e depois em Hanôver, onde frequentava a casa do grande filósofo Leibniz e teve oportunidade de facilitar, generosamente, os inícios da carreira inglesa de Handel.

* Stabat Mater (1724). Instrumentado de tal modo que as vozes dos solistas, o coro e a orquestra de cordas sucessivamente alternam e se acompanham: é o estilo “concertante”, o estilo característico de toda a música sacra do século XVIII, inclusive a de Haydn e Mozart. É uma obra belíssima.

Duetti do camara. Deliciosos diálogos eróticos musicados, em estilo homófono, naturalmente, mas aproveitando o acompanhamento para revelar umas finas artes polifônicas. Duetos como Tu m’aspetti, Dir che giovi, Che volete, Occhi perchè, Inquieto mio cor, Siete il più bizarro, foram o encanto e têm mesmo todo o encanto dos tempos de Watteau.

Antônio Lotti (1667-1740)

Crucifixus (6 vozes). Famosíssimo durante o século XVIII inteiro e entre os românticos; começa com um forte grito de horror do coro, “como um tipo de pistola na igreja”.

Miserere em sol menor. Mais litúrgico, cheio de cromatismos sombrios.

Pur dicesti. Uma daquelas arie antiche que sobrevivem, indestrutivelmente, no repertório dos cantores de concerto.

Antônio Caldara (1670-1736)

É mesmo um músico notável.

Magnificat em ré maior. Com orquestra; existe em cópia da mão de Johann Sebastian Bach; grande testemunha.

Te Deum para dois coros.

Crucifixus para dezesseis vozes. Obra de complexa estrutura polifônica.

Morte e sepultura do Cristo (1724). Oratório de alta categoria.

Francesco Durante (1684-1755)

A sincronização da música sacra com o estilo operístico de Alessandro Scarlatti é obra sua.

Suas obras Magnificat em si bemol maior, Magnificat em ré maior e Missa de Réquiem, de beleza suave e etérea, ainda podem ser ouvidas em concertos alemães (cada vez mais raramente), e em igrejas de Nápoles. Discípulo seu foi Pergolese. Seu estilo já é o mesmo da música sacra de Haydn e Mozart.

Leonardo Leo (1694-1744)

* La morte d´Abele (1732). Executado pela primeira vez desde 1732 num recente festival de música sacra em Perúsia; reúne estilo polifônico e expressão dramática, às vezes teatral. Os coros no fim das duas partes da obra, “Oh do superbia figlia” e “Parla l’estinto Abelle”, são solenes e comoventes ao mesmo tempo, com um pouco de sentimentalismo que lembra a proximidade da época pré-romântica.

Miserere para oito vozes. Seus contemporâneos e os críticos musicais do romantismo festejaram-no por causa das suas obras a capela, sobretudo por essa, famosa.

Benedetto Marcello (1686-1739)

O mais conspícuo entre os retrógrados ou conservadores; um dos nomes mais famosos na história da música. Num panfleto que fez sensação, Il teatro alla moda (1722), denunciou a ópera de tipo scarlattiano como mera exibição de vaidades dos compositores e cantores, sem valor musical e moral, sem apelo aos sentimentos humanos; Marcello já levanta a pergunta retórica que mais tarde os philosophes franceses dirigirão aos músicos: “Musique, qu’est-ce que tu me veux?” E prefere a música sacra que penetra nas profundidades da alma.
Marcello dá a impressão de reacionário. Mas não foi. Foi, em primeira linha, aristocrata e homem do mundo, talvez cheio de inveja dos sucessos dos músicos profissionais.

* Estro poetico-armonico (1723-27). A invasão da música sacra pelo estilo operístico encheu-o de indignação. A essa arte sacrílega opos os dois volumes dessa sua famosa obra. São cinquenta salmos, na paráfrase italiana (um pouco em dialeto veneto) de Lionardo Giustiniani, postos em música para um a quatro vozes com acompanhamento de violoncelo e baixo-contínuo, alguns a capela. O estilo é o de declamação justa das palavras; para acertar a “verdade religiosa” do texto, Marcello tinha assiduamente frequentado a sinagoga de Veneza, aproveitando as melodias do canto sinagogal, o que dá à sua obra um estranho sabor arcaico; por outro lado, arcaísmos tão artificiais não deixam de produzir involuntariamente efeitos operísticos. Alguns desses salmos sempre foram considerados como obras-primas (sobretudo os n. 1, 22, 25 e outros). É preciso advertir que os arranjos modernos para solistas e coro, por Frazzi e por Gerelli, não dão a ideia justa do original e de sua religiosidade mais íntima, por assim dizer camerística. (Salmo 19).

Arianna (1728). Ópera em que competiu com o sucesso dos músicos profissionais; teve na época um sucesso de estila; a representação em Veneza, em 1956, decepcionou.

Concerto para oboé e orquestra de câmara em ré menor. Obra de valor permanente; famosíssimo durante o século XVIII, transcrito para cravo pelo próprio Bach e pertencendo até hoje ao repertório camerístico; Schering e outros musicólogos já atribuíram esse concerto a Marcello; mas é obra anônima.

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