A tradição literária universal é nossa por herança: o desastroso projeto do Ministério da Educação
O Ministério da Educação da Pátria Educadora caiu nas mãos de um filósofo burocrata que decidiu revolucionar o nosso ensino através da formulação de uma nova Base Nacional Curricular Comum (BNCC). Como as vítimas de nosso sistema educacional saem dele, na maior parte das vezes, como semianalfabetos e analfabetos funcionais incapazes de diferenciar a tabuada da tabela periódica, o ministro da educação da ocasião decidiu mudar tudo. As disciplinas mais afetadas serão História e Língua Portuguesa (faltou-lhe coragem para revolucionar as leis da física).
A prevalecer seus planos mirabolantes, os futuros alunos da Pátria Educadora praticamente ignorarão a História da Europa, desde a Grécia Antiga até a Revolução Francesa. A partir de então, as aventuras e as desventuras de Péricles, Sócrates, Júlio César e Napoleão Bonaparte voltarão a ser como antes, nos tempos de Homero: serão objeto de ensinamento oral no seio das famílias tradicionais. Quase sem querer, por ato de um governo pretensamente democrático, o ensino tradicional da História voltará a ser “coisa de elite”.
Pretende-se instituir no lugar da História Ocidental clássica a História dos povos indígenas e dos povos africanos. Não é uma má ideia estudar a História dos povos constituintes de nossa nação. O solo brasileiro está encharcado com o sangue, o suor e as lágrimas de todos eles, inclusive dos portugueses. Conhecer-lhes a História é ser mais genuinamente brasileiro. Mas ignorar a História europeia é ignorar que é de lá que surgiu, por exemplo, a noção mesma de História como a concebemos hoje. Querem cortar o cordão umbilical desta criança chamada Brasil? Muito bem. Mas não lhe prive do convívio com a família! Nós trazemos em nossas veias sangue lusitano e precisamos de elementos simbólicos para trabalhar as questões ancestrais que fatalmente nos afetam na nossa travessia.
Na mesma linha está a decisão do Ministério da Educação, por ora anunciada, de suprimir do currículo nacional a obrigatoriedade do ensino da Literatura Portuguesa. Segundo o projeto, os alunos lerão e apreciarão textos literários tradicionais, da cultura popular, afro-brasileira, africana, indígena e de outros povos. A falta de referência à Literatura Portuguesa, berço de nossa língua materna, é um silêncio eloquente a indicar que alguém lá em cima, em Brasília, está com um pé atrás em relação a nossos patrícios. Parece que na origem dessa decisão estúpida está uma certa intenção parricida. Porém, não nos esqueçamos que muito do sal de nossa terra são lágrimas de Portugal (os pais também têm coração). Seja como for, bem ou mal, todo adolescente tem de passar por essa fase em que o afastamento em relação aos pais é o instrumento de constituição da própria individualidade. Isso é natural e desejável. Se se tratasse de um movimento cultural espontâneo, popular, como muitos já havidos entre nós (o Modernismo de 1922, por exemplo), nada se teria, nem se tem, a objetar. Trata-se de manifestações culturais mais ou menos espontâneas que têm, como tal, pleno direito à existência. Porém, se se está a planejar os rumos de uma civilização, não convém cortar as raízes com as origens. A própria noção de cultura recomenda manter vivas as referências ao princípio. Cultura é cultivo. Dentro da semente a ser cultivada estão as informações de todas as sementes que a constituem. Portugal é o avô que batia na vovó? Talvez seja. Mas é nosso avô, ora. Queremos ouvir suas histórias, queremos saber o que pensava, como fantasiava a vida. Queremos e precisamos ouvir esse avô porque ele é parte de nossa vida. Não adianta fazer de conta que ele não existe (diz a lenda que os avós ignorados vêm de noite e puxam a perna do ministro da educação).
Mas não é só. Entre outros motivos, não devemos ignorar a literatura ocidental porque a literatura brasileira não tem suficiente universalidade. O conceito de literatura universal, trabalhado por Goethe, diz que uma obra literária naturalmente trata, em alguma de suas camadas, de temas regionais ou nacionais. Porém, se quer ser universal, é necessário que, em uma camada mais profunda, toque o coração e a mente do ser humano de todas as épocas e lugares. A literatura universal é aquela capaz de interessar e de enriquecer o imaginário (e, portanto, a inteligência) de franceses, espanhóis, brasileiros, egípcios e chineses. Por quê? Porque ela leu a alma humana com profundidade suficiente para dizer algo a todos nós, de gregos a baianos.
Fechados em nossa autorreferência, perdemos muito. Tenho verdadeira fascinação por uma dúzia de nossos autores, em especial por nossos grandes poetas, gênios capazes de figurar como leitura obrigatória em currículos escolares de qualquer país. Não se trata de falar mal de nossa literatura ou de morrer de amores por ela. Trata-se, sim, de nos manter ligados à fonte da literatura universal, para a qual o Brasil, sejamos sinceros, ainda pouco contribuiu.
Conheço pessoas de bom coração que seriam capazes de dar a vida por nossa literatura. Eu a amo de paixão e gostaria muito de poder contribuir para seu enriquecimento. Mas sei que isso não é possível sem uma conexão rica e fértil com os grandes clássicos de todos os tempos, que nos mostram os caminhos já trilhados pelos grandes gênios e nos apresentam narrativas que, misturadas à nossa experiência nacional, nos capacitam a, enfim, falar de nossas próprias fantasias domésticas, iluminadas pela luz da sabedoria humana universal. Isso não é nenhuma novidade. Não perguntem ao ministro da educação, mas consultem nossos melhores escritores: Machado de Assis, João Guimarães Rosa, Manuel Bandeira, Carlos Drummond. Todos eles estiveram imersos na brasilidade e trabalharam nossas questões com muita propriedade, mas não deixaram de aprender muito com os estrangeiros – não porque seus mestres fossem propriamente estrangeiros, mas porque eram humanos (e humanos muito geniais).
Percebam que essa desastrosa política educacional do Ministério da Educação, ela própria, buscou suas fontes em teorias pseudo-filosóficas nada brasileiras. Nadando de braçada através de um oceano de teorias confusas e tortas, chegaremos à fonte marxista. Vejam. Vocês sabem o que é um monopólio: é uma medida necessária para a proteção da indústria nacional quando a competição com o mercado internacional arrisca sufocá-la. Os marxistas tratam os frutos do espírito como decorrência das forças materiais dispostas em determinada sociedade. Grosso modo, para Karl Marx não existe uma literatura universal, mas literaturas de classe. Por exemplo, existe uma literatura metropolitana e existe uma literatura colonial. Trata-se, então, para quem assim se orienta, de se embrenhar em uma luta de classes e privilegiar a nossa literatura, pela força do Estado, como fruto de forças materiais que, como tal, merecem proteção. Isso costuma funcionar com carros e sapatos, mas não com os bens culturais – pela simples razão de que os bens do espírito sujeitam-se a leis diversas. Se eu lhe dou uma certa quantia em dinheiro, eu a perco e já não a tenho mais. Porém, se eu lhe transmito um conhecimento, nós dois passamos a tê-lo. Os bens se gastam, a cultura se multiplica.
Fechar as portas de nossas escolas à literatura universal é negar à nossa nação o direito de receber uma herança rica e gratuita que já nos pertence como membros do gênero humano.
A pretensa proteção que se pretende oferecer à nossa literatura, pela força estatal, deveria nos envergonhar porque é a confissão, com carimbo oficial, de que nossa literatura precisa da força do estado para se manter de pé. A literatura brasileira contemporânea, de fato, está em petição de miséria. Se duvida disso, tente encontrar em toda a nossa literatura cinco grandes personagens (personagens famosos não são necessariamente grandes personagens); e, principalmente, tente se lembrar de algum personagem, grande ou famoso, que nossa literatura nos tenha dado nos últimos quarenta anos.
Estamos mal, efetivamente; e reconhecer isso talvez seja o primeiro passo para começar a mudar de vida. Entretanto, a solução para esse quadro não é um decreto do Ministério da Educação. A solução, evidentemente, passa pela inscrição de nossos escritores na tradição dos grandes escritores. Desculpem-me a redundância.
Não tenho dúvida de que pulsa em nossa alma nacional conflituosa o vivo e puro amor de que somos feitos, amor que “como a matéria simples busca a forma”. Temos matéria suficiente para erguer alguma das melhores literaturas do universo, mas vivemos em tempos de confusão, de vulgarização e de relativização das formas. A solução para esse tormentoso problema, não tenho dúvida, está no Céu. Em tempos de crise, não adianta colocar a cabeça embaixo do travesseiro. A literatura em tempos de crise exige um exercício de interioridade, mas, paradoxalmente, pede que tenhamos ouvido “capaz de ouvir e de entender estrelas” e – por que não? – ser com a lua, porque “em cada lago a lua toda brilha, porque alta vive”.
(A ser publicado no próximo número da Revista Suindara, da Academia Valadarense de Letras)
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