Sete livros para começar bem a sua vida de estudos
Pode parecer estranho o que digo, mas ninguém começa a estudar pelos livros.
Numa vida de estudos séria somente buscamos os livros depois de cumprir algumas etapas importantes, que são uma espécie de análise da qualidade do solo e a preparação para o cultivo.
O solo, aqui, é sua alma.
A análise do terreno e sua preparação para o trabalho giram em torno da angústia radical que leva o estudante buscar, nos estudos, as respostas que o inquietam.
Essa angústia, entretanto, não costuma aparecer clara como o Sol numa manhã de sábado. No começo, o estudante angustiado caminha no escuro – embora sinta, rondando em torno de si, um emaranhado de questões que o impulsiona a entrar em contato com os escritores que prometem ensiná-lo a pensar e a entender a realidade.
O que fazer, nesse cenário, quando você sabe que deve começar a estudar, mas não consegue identificar bem quais são as questões que o afligem?
A proposta, aqui, é: aprenda com quem já fez.
A sugestão que eu lhe dou é: tome contato com autores que descreveram diferentes estados de dúvida e explicitaram uma variada sorte de questões que costumam aparecer ao longo de uma vida de estudos.
Quando você conhecer o modo como as questões surgiram em cada caso (e como costumam surgir, desde que o homem é homem) e, além disso, quais são as possíveis soluções para elas você desenvolve, gradativamente, a capacidade de refletir sobre o seu próprio caso.
Por isso, eu gostaria de sugerir a você sete livros que têm o potencial de conectá-lo com diferentes tipos de questões existenciais e intelectuais, de modo a auxiliá-lo no começo de seus estudos.
Alguns deles podem oferecer maior dificuldade ao iniciante. Se a leitura travar, sugiro que persista: o que importa, nessa primeira leitura, é que você seja capaz de identificar as questões existenciais ou intelectuais que o texto apresenta e o modo como o escritor/personagem conviveu com elas e buscou resolvê-las.
Anote as sugestões:
1. Confissões, de Santo Agostinho
As Confissões são a autobiografia intelectual de Santo Agostinho.
Quando jovem, Agostinho era curioso e inquieto. Quando descobriu a retórica clássica, dedicou a ela todas as forças de sua poderosa inteligência.
Porém, embora ele brilhasse nas praças, nas assembleias e nas salas de aula, no fundo continuava a sentir que algo ainda lhe faltava. Nas Confissões ele nos conta como se aproximou da fonte de sua felicidade, que permitiu ao seu coração repousar em paz.
A leitura das Confissões nem sempre é mamão-com-açúcar para quem está começando, sobretudo quando Agostinho começa a entrar em discussões filosóficas. A dificuldade deve-se não só à terminologia técnica, mas também à distância em que estamos do contexto em que as questões surgiram.
Se sentir dificuldade em determinados trechos, não hesite em seguir adiante. Lembre-se de que a introdução à filosofia se faz por camadas. Numa segunda leitura você certamente estará mais preparado para compreendê-los.
2. São Bernardo, de Graciliano Ramos
São Bernardo é uma romance contado em forma de autobiografia. Conta a história de Paulo Honório e de suas desventuras com sua esposa Madalena. Essa tragédia rural, maravilhosamente narrada, conduz o leitor ao interior da consciência de um homem que só a experimenta à meia luz.
Assim como A morte de Ivan Ilicht, de León Tolstói, e Nó das Víboras, de François Mauriac, São Bernardo é um livro faz acordar os homens. É um soco no estômago e um aviso para que prestemos atenção ao que acontece ao nosso redor antes que já seja tarde.
3. Apologia de Sócrates, de Platão
Platão foi aluno de Sócrates. Como tal, acompanhou o processo, o julgamento e a execução de seu mestre, que foi acusado de desviar, para o mau caminho, os jovens que ouviam, nas praças de Atenas, as discussões que ele travava com os homens mais respeitados do local.
A Apologia é o relato da defesa de Sócrates perante o tribunal que o condenou; e nos mostra que, na vida de um verdadeiro filósofo, nem tudo ou quase nada) são flores.
O conhecimento que você vier a adquirir gerará responsabilidades e o distinguirá daqueles que não o possuem.
Se você pretende saber mais que os outros e, ao mesmo tempo, quer ser querido e amado por todos, a leitura da Apologia pode lhe ajudar a colocar os pés no chão e, se você estiver seguro de seus propósitos, a começar a enfrentar esse desafio.
4. Dom Casmurro, de Machado de Assis
Quem nunca odiou ter sido obrigado a ler o Dom Casmurro no colégio que atire a primeira pedra. Eu passei por isso, você passou por isso. Essa é a razão pela qual a magnífica história de Bento Santiago está no nosso imaginário como um livro meio chato e meio bobo, escrito para adolescentes.
Só que não.
Este livro também é uma autobiografia, e foi escrito por Bento Santiago quando ele já é um senhor de idade. Na ocasião, ele passa a refletir sobre os episódios mais importantes de sua vida.
Capitu, como sabem, ocupa o lugar mais importante da narrativa.
Porém, muito além de uma questão conjugal a respeito da possível traição de Capitu, a pergunta que Bento se faz nas entrelinhas do segundo capítulo é muito séria:
Como foi possível que o Bentinho se tenha transformado em quem eu sou hoje?
Por não saber como responder a essa pergunta, o narrador nos conta a sua história, na tentativa de unir as duas pontas de sua vida.
O sentir falta de mim mesmo é um sentimento comum para algumas pessoas. Cecília Meireles tem um poema lindíssimo chamado Retrato, em que ela, tomada de espanto, tem a mesma estranha sensação que Bento Santiago no começo de Dom Casmurro.
O livro de Machado de Assis pode nos auxiliar a entender os caminhos e os descaminhos que inadvertidamente seguimos na busca entender melhor – e assumir, de alguma forma – as escolhas que nos constituem hoje.
5. Ortodoxia, de G. K. Chesterton
Deliciosamente bem escrito, o livro mais conhecido de G. K. Chesterton é uma espécie de autobiografia espiritual.
O autor nos relata, como quem conversa conosco, os caminhos argumentativos através dos quais ele se convenceu de que o Cristianismo “é a melhor raiz de energia e ética sólida”.
Através de raciocínios engenhosos, Chesterton nos vai conduzindo à formulação de uma visão de mundo que ele chama, de brincadeira, de “minha heresia”. Ao final da trajetória, ele descobre que tudo o que ele encontrou era, nada mais, nada menos, que a formulação da doutrina cristã (que ele chama de ortodoxia, “suficientemente resumida no Credo dos Apóstolos”).
A leveza e o bom humor de Chesterton derrubam os muros de nossa teimosia e afastam as resistências que porventura tenhamos de ingressar no interessantíssimo universo da religião cristã.
6. O filósofo autodidata, de Ibn Tuffail
Esse livrinho precioso descreve, numa linguagem simples, as etapas através das quais o menino Hayy ibn Yaqzan – criado por uma gazela – vai traduzindo em conhecimento a própria experiência.
Observando o comportamento das plantas e dos animais, o garoto parte das intuições mais rudimentares e, progredindo aos poucos, chega à contemplação mística.
O livro é inspirado em ensinamentos de filósofos muçulmanos, de quem ele não se afasta muito. Por isso, sua leitura pode ser espinhosa para quem não tem uma mínima familiaridade com o pensamento filosófico.
Se for o seu caso, você pode começar logo pela história do nascimento do garoto e deixar para ler o preâmbulo ao final.
7. As brasas, de Sándor Márai
O livro mais conhecido do escritor húngaro Sándor Márai conta o encontro acalorado de dois amigos, Henrik e Konrad, que não se viam há quarenta e um anos.
O calor do encontro, porém, é inquietante.
Um dos assuntos da longa conversa que travam noite adentro é Krisztina, mulher que no passado orbitou o desejo de ambos.
Temos aqui a narrativa de um acerto das contas de uma amizade ambígua, permeada pela projeção e pela desconfiança. A sensação que o leitor tem é a de que os dois amigos precisam passar a limpo o passado para seguir adiante, purificados de certos sentimentos que, lá atrás, não foram suficientemente trabalhados e ainda ardiam no peito como um carvão em brasa.
Sugestões anotadas?
Bom, você deve ter reparado que a maioria dos livros que indiquei aqui é uma narrativa autobiográfica.
Isso não foi de caso pensado.
Mas é uma pista interessante: as questões que surgem para o estudante iniciante devem ser trabalhadas em forma de narrativa. Quando, como e onde surgiram essa as questões?
O primeiro passo para começar nessa jornada é ser capaz de recolher em sua memória – dando a eles certa unidade – os vestígios das fissuras (cf. Introdução à Filosofia, de Julián Marías) que suas experiências foram deixando em você.
Respostas