Roteiro para a leitura de Platão
Para aqueles que me perguntam sobre a leitura da obra de Platão (que traduções comprar, em que ordem ler etc), essa é a minha resposta – a única que eu sou capaz de dar neste momento. O texto terá três partes. Essa é a primeira.
“No princípio, era o espanto.”
Distraído, rolando a tela do celular para baixo, o rapaz levantou os olhos e viu, sentada do outro lado do vagão, a menina – que ele já conhecia – lendo Mais Platão, Menos Prozac, de Lou Marinoff. Ela pegava o metrô na estação seguinte à dele; e, quando ele descia, ela permanecia em viagem. Ele sabia de onde ela vinha, mas não para onde ia. Mais interessado na bela moça que no velho Platão, seu queixo começou lentamente a cair para próximo do peito que não via um supino há dois anos.
A beleza da moça concentrada na leitura do comentador de Platão o atordoou. Tecnicamente, ele foi tomado pelo espanto, estado sem o qual a Filosofia não é possível.
Ali, naquele mesmo vagão, outros tantos passageiros já haviam sido tomados de espanto naquela mesma semana.
O rapaz que, numa discussão de Facebook, tomou uma lavada de um menina dois anos mais nova que ele, ficou absolutamente atordoado. A resposta que recebeu foi tão bem colocada, tão penetrante e ao mesmo tempo tão despretensiosa, tão educada e tão sarcástica. Aquilo foi um clarão de lucidez escandalosa que pareceu loucura à primeira vista. Foi um comentário profundamente cristão sob uma aparência enganosamente obscena. Era Aristóteles no programa do Alborghetti. Não dava para acreditar. Demorou duas horas para se restabelecer da vergonha.
E o outro? Casado há sete anos com uma boa moça, com quem tinha uma filhinha. Um amigo lhe mandou um WhatsApp dizendo que a recatada mulher está saindo com um colega de trabalho. Sob a desculpa de visitar um cliente, há três semanas que vão, na verdade, a um motel barato ali para os lados do Butantã. Ele já havia desconfiado desse rapaz certa vez. Mas tudo lhe pareceu uma fantasia pueril de sua cabeça. O amigo fiel lhe deu a notícia, assim, sem prepará-lo. Não sabia o que fazer. Por alguns minutos, cerca de vinte, perdeu a noção para onde estava indo. Foi obrigado a descer na ultima estação, onde o guardinha lhe surpreendeu com os olhos fixos no nada.
O espanto do nosso rapaz era mais leve, menos dramático, mas nem por isso menos impactante. Ele foi atingido por uma raio de luz vindo do outro mundo, da esfera do transcendente, do infinito. Teve a certeza de que não lhe seria possível cessar essa busca, que mal iniciara, até que pudesse experimentar e se saciar das migalhas caídas da mesa desse banquete, de cujos indícios tinha notícia através dos modos daquela moça do metrô lendo o livro do Lou Marinoff.
“A salvação deve estar nos livros – em qualquer livro.”
O único sinal que a moça lhe enviou – além de sua incrível beleza – foi seu interesse por Platão. Pela beleza pessoal, ele não estava à altura dela. Isso era um fato incontroverso. Por isso, a solução para gerar a sintonia com a moça foi ir à livraria do shopping atrás de algumas linhas escritas sobre o mestre ateniense.
Lembrou-lhe vagamente ter ouvido nas aulas do colégio, pelo professor cheio de espinhas e cabelo bagunçado, algo sobre o mito da caverna. A sensação que teve, na época, foi a de que o personagem doidão, criado por Platão, saiu da caverna, descobriu a verdadeira realidade das coisas, e se deu bem. Ora, ele também queria se dar bem – sobretudo, queria se dar bem com a moça do metrô, que certamente veria outras vezes naquela mesma semana, no mesmo bat-horário.
– Eu queria fazer uma busca, amigo. Você tem o livro do Platão chamado O Mito da Caverna? – disse ele ao vendedor.
– Um minuto que eu já olho para você.
Clica aqui, clica ali. O vendedor lhe disse que essa obra – olha, infelizmente, essa obra – estava em falta. Acostumado a receber curiosos como aquele na livraria, o vendedor tinha na manga a indicação adequada.
– Esse eu vou ficar te devendo, fera. Mas tem um aqui que é ouro: Platão em 90 minutos – ahn? -, do Paul Strathern. Esse autor é muito bom. Ele é especialista em todos os filósofos. Tá tendo muita saída.
O rapaz não tinha outra solução. Três segundos de meditação – levo ou não levo – foram suficientes para que o perfume da moça do metrô entrasse por suas narinas. Um perfume meramente imaginário, evidentemente projetivo, pois ele nunca se aproximara dela a ponto de absorver esse dado concreto dos sentidos porventura vindo delazinha própria. Diferentemente, o que sempre experimentou, através do olfato, na sua presença, foi um conjunto indefinido de eflúvios de variada ordem, que se misturam no espaço minúsculo e muito bem preenchido de um meio de transporte público: suor, perfume barato, cheiro de cabelo molhado, pele de fumante, puns, roupa dormida. Mas da moça do metrô só lhe ficou o perfume delicioso que ele, com uma perícia que infundadamente se atribuía, guardou em sua memória afetiva.
Mal sabia que, na verdade, o que tinha sob seu nariz era um aroma vindo de outra dimensão (da mesma de que lhe veio o raio de luz a que chamamos espanto), uma ideia de aroma perfeito, que ele experimentara bem antes de habitar o útero de sua mãe, antes que sua alma se unisse temporariamente a seu corpo físico; e que passou a habitar sua consciência, evocando nele sensações mais ou menos boas, após o contato com muitas fêmeas cheirosas, a começar por sua mãe, pela enfermeira da maternidade, por suas tias, por sua irmã e pelas meninas do colégio.
Todas essas mulheres participavam da beleza que lhe chegava através do perfume da pele feminina, incrementado, na melhor das hipóteses, pelo líquido dos frascos de essência perfumada. Todas participavam, de alguma forma, da beleza. Mas só aquela moça do metrô era a encarnação mesma da ideia perfeita de mulher perfumada e disponível à união mística através do amor. Apostou que o livrinho do Paul Strathern poderia ajudá-lo a acessar esse universo novamente, quando estivesse distante da moça – o que era a mais das horas. Na verdade, a aposta mais ousada era a de que por Platão chegaria àquela moça concreta, encarnação da beleza em si. Strathern e Platão eram a representação do erôs em sua função de intermediário.
Passou pela sua cabeça o caminho em que se havia envolvido: o desejo pela moça o levou à livraria, onde teve contato com o vendedor, que lhe apresentou Paul Strathern, que lhe apresentaria Platão, que o levaria de volta até a moça. Ó, raios! Não era mais fácil ir direto à moça e falar de Lou Marinoff, que ela já conhecia? Ou, sei lá, falar de Filosofia Clínica, essas paradas? Ou, antes, não era melhor e mais eficiente sentar-se ao lado dela e falar dela própria, do seu perfume, de desejo que ela, por todos os seus atributos, despertava nele?
Não, não era.
A estratégia pareceu-lhe muito agressiva. Por virtude do muito imaginar, ele pensou. O amador se transforma na coisa amada por virtude do muito imaginar, disse o velho Camões. Uma coisa de cada vez. Devagar se vai longe.
Foi, ávido, a Paul Strathern. Tinha uma fome imensa de absorver o imortal Platão. Terminou o livro no mesmo dia em que o começara.
Foi em vão, apesar de tudo. Gastou bem mais que noventa minutos, claro, porque – leitor aplicado – fez do texto um minucioso fichamento, que depois, pensou, poderia até publicar num blog que abriria para divulgar ao distinto público suas impressões de leitura.
Depois de concluí-lo, consultou-se com um tio entendido em Filosofia, que lhe indicou a leitura da Apologia de Sócrates. Leia o próprio Platão, disse. Às coisas mesmas!
– Qual é a melhor tradução? – ele perguntou. Essa mania de querer selecionar a tradução. Ai, meu Deus. Ele já viu alguns amigos com cara de entendidos se perguntando pela melhor tradução. Traduttore, traditore. Pelo que entendeu, uma boa tradução é a chave correta, a chave mística, que abre a porta do texto original e lhe permite entrar no Sanctum Sanctorum e, ali, oferecer sacrifícios ao deus do autor. Uma tradução ruim não abre a porta do original, e deixa o leitor do lado de fora da festa, como cachorro magro, olhando pela janelinha as pessoas se divertindo lá dentro, rindo, já meio alegres, tomando uísque doze anos. Qual é a melhor tradução, tio?
– Qualquer tradução lhe serve agora, moleque, disse-lhe o tio. Não comece a ler Platão com frescura. De qualquer modo você não vai entrar na festa agora. Não se iluda. Você é o cachorrinho que pega as migalhas. Se lembra?
O tio tinha alguma razão, ele logo entendeu. Para que sua leitura fosse prejudicada por uma má tradução seria preciso que ele fosse capaz de ler o texto numa camada muito mais profunda do que lhe permitia sua reduzida habilidade atual. Pegue qualquer tradução que achar, foi a sugestão. Qualquer uma que achar na internet. Até a da Coleção Pensadores serve, se você quer saber.
Depois, a sugestão é que lesse o Críton, o Fédon, o Banquete, o Teeteto e talvez o Górgias. Se ele sair dessas leituras com algumas questões, que anote num bloquinho. Se a leitura desses textos não trouxer a ele qualquer questão ou reflexão, que esqueça esse negócio de Filosofia. Não havia nascido para isso.
“Quero comprar todos os diálogos de Platão.”
O tio entendido havia complicado um pouco sua vida. Colocara entre ele e a moça do metrô mais cinco ou seis livros. Ela ficava mais distante. Mas nem por isso menos desejável. Desse ser ímpar ele ainda ansiava prole, para que a flor do belo não se extinga para sempre nesta cidade miserável.
É evidente que ele não começou pela Apologia de Sócrates. Na verdade, ele não estava interessado em saber se o professor de Platão seria condenado ou absolvido da acusação de ter corrompido a juventude ateniense. Cada um com os seus problemas, irmão. Ele também não estava interessado na imortalidade da alma – daí que descartou começar pelo Fédon. Começaria pelo breve Críton? Deu uma olhada. Entendeu que falava de um amigo lobista de Sócrates, que tramava para lhe tirar da cadeia. Não, não dá: é muito vida real pro meu gosto. Não é isso o que estou buscando agora. O Górgias também não lhe apeteceu. Era muito facebookiano. Ele estava particularmente cansado de discussões e de textão de rede social. Uns caras barbados discutindo política e literatura. Arre. Menos retórica e mais calor humano, era o que ele queria. Ficou entre o Teeteto e o Banquete. Intuiu que o primeiro não o levaria a lugar nenhum. Um rápido page down pareceu-lhe indicar que Platão talvez estivesse de sacanagem quando o escreveu. Falou, falou e não concluiu nada. Dos seres ímpares ansiamos prole. Ele tinha pressa. E sabia que entre ele e a moça havia um caminho a ser trilhado. Quem não começa não termina. Iria, pois, enfrentar o Banquete.
A leitura do Banquete – pelo menos levando em conta as partes que entendeu – deixou nele uma excelente impressão de Platão. Mesmo o filósofo não o ajudasse a possuir a moça do metrô, pelo menos já estaria a caminho de possuir a verdade, ou – o que é o mesmo – já estaria no seu rastro.
Sentia em si o borbulhar do gênio. Se a moça não lhe desse a mínima numa provável abordagem na saída da estação, animava-lhe a perspectiva de ter essa comunhão de interesses com aqueles homens que viveram há 2.500 anos naquele país distante que hoje – estranho e periférico – chama-se Grécia.
Mas voltemos à coisa em si. O rapaz ficou alguns dias sem ver a moça. O vazio do vagão estimulava nele meditações de variada ordem. Levantou hipóteses:
i) Será que ela tem entrado em outra estação? Ou tem ocupado outro vagão?
ii) Está doente? É doença grave?
iii) Mudou-se de cidade?
iv) Já não precisa pegar o metrô para ir à Faculdade, porque as aulas do semestre terminaram? Aliás, faz faculdade? Ou só trabalha, e foi transferida para outro lugar?
O Banquete não lhe auxiliava na resposta a essas questões. De todo modo, percebeu que fora tomado pelo hábito de levantar hipóteses. A privação do ser amado levou-o a se perguntar pela natureza daquele sentimento. Um amigo recomendou-lhe Freud, dizendo que, provavelmente, ele via na moça uma instância de sua mãe, uma representante mais ou menos adequada – só que, nesse caso, permitida – do objeto de seu amor edipiano.
– Bobagem, disse o rapaz. Isso é loucura da cabeça de um pervertido. Ficarei com Platão, mesmo.
No dia seguinte em que renunciou a buscar em Freud uma solução intelectual para seu desejo, a moça lhe reapareceu, ainda mais linda. Ela continuava interessada em Platão. Dessa vez, lia Platão e o ornitorrinco entram num bar, de Thomas Cathcart e Daniel Klein. Teve sentimentos ambíguos. Ao mesmo tempo em que se alegrou por perceber que o interesse da moça por Platão não era passageiro, intuiu que ela provavelmente tomava um caminho oposto ao dele. Lembrou-se de que já a vira, há mais ou menos um mês, com um livro de Sartre. Depois, com o do Marinoff. Agora, com esse do Ornitorrinco. Francamente. Estava um pouco frustrado. Imaginou que ela talvez não tivesse pernas para acompanhá-lo. Apostou que ela, talvez, não fosse a sua metade da laranja.
A gota d’água, vocês nem imaginam, veio no dia seguinte. Seu mundo caiu quando viu a moça entrar no vagão, às 6h47 de uma manhã de quarta-feira, com um livro do Mário Sérgio Cortella nas mãos. Apoiando-se na estrutura próxima dele, ela, assim que se sentiu suficientemente segura, concluiu uma conversa que mantinha no WhatsApp tirando e enviando uma foto do livro.
Esse ser néscio, não satisfeita em ler o livro do Cortella, ainda por cima faz apostolado dele. É muito para mim, pensou. Tentou se afastar dela, num gesto de espontânea repulsa. Mas o vagão estava lotado.
Não conseguia segurar seu sentimento de frustração. Por algumas vezes dirigia um olhar à leitora, como quem olha para um defunto para lhe confirmar a morte. Teve certeza de que algo morrera nele naquela manhã. Em dado momento viu nos olhos da moça sinais de uma satisfação tão genuína com o Cortella que não foi possível permanecer ali a seu lado. Pediu licença e foi-se encaminhando para a porta, como se fosse descer na próxima estação. Na verdade, não ia. Sua estação ainda demoraria um pouco. Já descera, porém, daquela paixão até ontem arrasadora. Agora, só lhe restavam cinzas desse sentimento. Ele lendo Banquete e ela lendo o Cortella. Não havia caminho possível entre eles.
Era o fim.
Passou duas semanas assistindo a séries de televisão. Não abriu um livro sequer nesse período. Todos os livros lhe pareciam indignos, porque compartilhavam certas características com o livro do Cortella. Era preciso deixar a poeira baixar. Era preciso passar por uma dessensibilização.
Um dia, subitamente, no banho, veio-lhe a solução para seu estado pré-depressivo. Lembrou-se de uma intuição que tivera lendo o Banquete. Ora, aquele ser que hoje deve estar lendo Leandro Karnal, e que amanhã certamente será visto lendo Harry Potter e a Pedra Filosofal foi, tão somente, o instrumento de que a Beleza se utilizou para chegar até ele. Ora, ela participava da Beleza. E através dela ele teve acesso a esse bem. Mas se lembrou da sugestão de Platão: da contemplação da beleza nos corpos individuais é natural que passemos à contemplação da Beleza no conjunto dos corpos. E nesse conjunto – e isso ele não poderia colocar na conta de Platão – é claro que há de haver outra moça que participe da Beleza e do Bem tanto quanto eu, e que, de preferência, leia Platão mesmo e não seus comentadores degenerados.
Com isso na cabeça, saiu do banheiro com a ideia de ir atrás da obra completa de Platão. Descobriu, numa rápida pesquisa, que havia aproximadamente trinta diálogos considerados autênticos e algumas cartas, das quais a mais importante era a de número sete.
Fuçando no terceiro volume da História da Filosofia Antiga, do Giovanni Reale (Edições Loyola), descobriu que a obra platônica chegou a ser catalogada pelo gramático Trásilo em tetralogias (que não indica, necessariamente, a ordem de sua composição):
I: Eutífron, Apologia de Sócrates, Críton e Fédon;
II: Crátilo, Teeteto, Sofista e Político;
III: Parmênides, Filebo, Banquete e Fedro;
IV: Alcibíades I, Alcibíades II, Hiparco e Amantes;
V: Teages, Cármides, Laques e Lísis;
VI: Eutidemo, Protágoras, Górgias e Mênon;
VII: Hípias Menor, Hípias Maior, Íon e Menexeno;
VIII: Clitofonte, República, Timeu e Crítias; e
IX: Minoxe, Leis, Epínomis e as Cartas.
Desses, a tradição de estudos platônicos não reconhece a autoria de Alcibíades II, Hiparco, Amantes, Teages, Clitofonte e Minoxe. Já houve certa controvérsia, também, em torno do Alcibíades I, que hoje, com relativa segurança, é considerado autêntico. Das cartas, só há interesse genuinamente filosófico na de n. 7.
Com essa informação confiável em mãos, era tempo de correr atrás das trinta obras autênticas. Mas logo percebeu uma dificuldade. Dois mil e quinhentos anos depois que Platão teve o trabalho de escrever sua obra, ainda não havia uma edição completa de sua obra em português. Havia a tradução do Carlos Alberto Nunes, mas só era possível encontrar alguns poucos volumes em sebos distantes. Então, ele teve de garimpar os volumes dessa tradução e de outras em sebos e livrarias.
Para não assistir à degeneração de uma inteligência que antes lhe parecera promissora passou a chegar na estação do metrô vinte minutos antes do horário usual. Se porventura se atrasava, arrumava um jeito de ir de ônibus. Num dia de prova, chegou mesmo a pegar um Uber. Tudo para não trombar com a degenerada. Num dia em que ela também acordou mais cedo, viu-a com um livro da Márcia Tiburi, a filósofa do cu.
A esta altura ele já estava a um passo de completar sua coleção dos diálogos de Platão. Só lhe faltava o Timeu. Por isso o vislumbre daquele nome na capa do livro carregado por sua antiga paixão não lhe causou irritação. Ele já estava suficientemente brioso para se importar com o andar de baixo. A vista do livro da filósofa anal despertou nele um genuíno sentimento de pena. Sua busca já não era em causa própria. Era para ajudar a esses miseráveis que não sabem o que fazem. Coitados.
O dia em que completou sua biblioteca platônica ficou em sua memória para sempre: foi numa sexta-feira chuvosa. Um pouco antes do almoço, passou pela porta de um sebo e entrou. Na seção de Filosofia, lá estava ele, entre tantas Apologias e tantos Crítons: O Timeu, numa edição suspeita de uma editora chamada Hemus, com tradução de Norberto de Paula Lima. Tinha outra opção? Não. Era essa ou era essa. A leitura de Platão submete o interessado a riscos. Ele tinha certeza de que os responsáveis por aquela editora acreditavam em ETs e mantinham grupos de discussão sobre a aparição de discos voadores.
Mas, no final das contas, isso não importava muito. O texto estava ali, talvez um pouco distorcido. Entre tantas opções que se apresentaram ao tradutor, em momentos difíceis do trabalho de tradução, talvez aquele tal Norberto tivesse adotado alguns caminhos controversos. O rapaz, porém, não tinha outra solução. O melhor do Brasil é o brasileiro, que não desiste nunca. Até que começasse a tomar aulas de Grego Antigo, teria de correr riscos. Enquanto isso, também começou a buscar edições dos diálogos em traduções para o espanhol, para o inglês e o francês.
Chegando em casa no final da tarde, colocou o último volume na estante. Era como se acabasse de montar um quebra-cabeças de mil peças. Estava montadinho, embora, a pouca distância, o quadro se apresentasse meio confuso. É que não conseguira completar a coleção dos diálogos senão recorrendo às mais variadas traduções, que foram as seguintes:
1. Apologia de Sócrates, Banquete, Eutífron, Críton e Fédon (tradução de Jaime Bruna, Editora Cultrix, 2006); 2. Eutífron, Apologia de Sócrates, Críton e Fédon (Coleção Os Pensadores, Editora Nova Cultural, 1999). 3. Fédon, Sofista e Político (vol. II das Edições de Ouro, 1972, tradução de Jorge Paleikat e João Cruz Costa). 4. Fedro, Cartas e o Primeiro Alcibíades (vol. 5 da edição da tradução de Carlos Alberto Nunes, pela Editora da UFPA, publicado em 2007); 5. Críton, Laques, Cármides, Lísis, Eutífron, Ion, Mênon, Menéxeno, Eutidemo e Hípias Maior (vol. 1-2 da edição da tradução de Carlos Alberto Nunes, pela Editora da UFPA, publicado em 2007); 6. A República (tradução de Anna Lia Amaral de Almeida Prado, Editora Martins Fontes, 2006); 7. Mênon (tradução de Maura Iglésias, Editora da PUC Rio e Edições Loyola, 2005 – edição bilíngue); 8. Teeteto, Sofista, Protágoras (vol. 1 da tradução de Edson Bini, Editora Edipro, 2007). 9. Íon e Hípias Menor (tradução de André Malta, LP&M Pocket, 2007); 10. O Banquete (tradução de Donaldo Schüler, LP&M Pocket, 2009); ; 11. Parmênides (tradução de Maura Iglésias e Fernando Rodrigues, Editora da PUC Rio e Edições Loyola, 2003 – edição bilíngue); 12. Filebo (tradução de Fernando Muniz, Editora da PUC Rio e Edições Loyola, 2012 – edição bilíngue); 13. As Leis e Epínomis (tradução de Edson Bini, Editora Edipro, 2009); 14. Parmênides (tradução e comentários de Mário Ferreira dos Santos, com o nome de O um e o múltiplo em Platão, Editora Logos, 1958); 15. Fédon (vol. 2 da edição da tradução de Carlos Alberto Nunes, Editora da UFPA, 2011 – edição bilíngue); 16. Fedro (vol. 3 da edição da tradução de Carlos Alberto Nunes, Editora da UFPA, 2011 – edição bilíngue); 17. The Collected Dialogues (editado por Edith Hamilton e Huntington Cairns, Bollingen Series LXXI, Princeton University Press, 2005 – contendo 28 diálogos [dos 29 considerados autênticos só não consta o Alcibíades I] e as treze cartas); 18. Crátilo (tradução de Maria José Figueiredo, Editora do Instituto Piaget, 2001); 19. Górgias (tradução de Daniel R. N. Lopes, Editora Perspectiva, 2011 – edição bilíngue); 20. Timeu e Crítias (tradução de Norberto de Paula Lima, Editora Hemus, 1981); 21. Apologia de Sócrates e Críton (vol. 5 da edição da tradução de Carlos Alberto Nunes, Editora da UFPA, 2015 – edição bilíngue); 22. Laques e Eutífron (vol. 6 da edição da tradução de Carlos Alberto Nunes, Editora da UFPA, 2015 – edição bilíngue); 23. O Banquete e o Fedro (tradução para o francês de Émile Chambry, GF Flammarion, 2007); 24. Fédon, O Banquete e Fedro (tradução francesa, respectivamente, de Paul Vicaire [Fédon], Paul Vicaire e Jean Laborderie [O Banquete] e Claudio Moreschini [Fedro], Edições Gallimard, 2011); 25. Cármides e Lísis (vol. 7 da edição da tradução de Carlos Alberto Nunes, Editora da UFPA, 2015 – edição bilíngue); 26. Primeiro Alcibíades e Segundo Alcibíades (vol. 8 da edição da tradução de Carlos Alberto Nunes, Editora da UFPA, 2015 – edição bilíngue); 27. Protágoras (tradução de Daniel R. N. Lopes, Editora Perspectiva); 28. A República (vol. 4 da edição da tradução de Carlos Alberto Nunes, Editora da UFPA, 2016 – edição bilíngue); 29. Apologia de Sócrates e Críton (tradução de André Malta, LP&M Pocket, 2019); 30. Teeteto (tradução de Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri, Editora da Fundação Calouste Gulbenkian, 2015); 31. O Banquete (vol. 1 da edição da tradução de Carlos Alberto Nunes, Editora da UFPA, 2018 – edição bilíngue); 32. Hípias Maior e Hípias Menor (vol. 9 da edição da tradução de Carlos Alberto Nunes, Editora da UFPA, 2016 – edição bilíngue); 33. O Banquete (tradução de José Cavalcante de Souza, Editora 34, 2019 – edição bilíngue); 34. Fedro (tradução de José Cavalcante de Souza, Editora 34, 2016 – edição bilíngue); 35. Fedro (tradução de Maria Cecília Gomes dos Reis, Editora Penguin-Companhia das Letras, 2016).
Era bonito de se ver. Olhou por um tempo aquele conjunto. Intuiu todo o esforço de Platão para escrever, diálogo por diálogo, toda sua obra – que por uma graça de Deus nos chegara completa.
Pela primeira vez na vida estava diante de uma obra completa de um escritor. Essa experiência da unidade lhe trouxe um sentimento de paz que, por um momento, pareceu que ainda não havia experimentado. Na verdade, essa impressão era, platonicamente falando, equivocada. Se ele captou a unidade da obra platônica isso se deve à experiência de unidade que tivera antes de se banhar no rio do esquecimento e antes de que, perdendo as asas, caísse nesta existência.
A experiência da unidade, diante da estante, era genuína. Suas ideias é que estavam meio bagunçadas. Sentiu que a coleção dos diálogos e a contemplação da unidade por cima dos volumes esparsos era tudo muito bom, mas insuficiente. Entendeu que estava no momento propício para passar para a leitura do segundo diálogo de Platão. Era um desafio e tanto. Teria um longo caminho pela frente. Não tinha a moça do metrô por companheira, é bem verdade. Mas não estava só. Ao seu lado estava Sócrates, a andar pelas ruas de Atenas fazendo inimigos e influenciando pessoas.
A imagem da moça do metrô ainda lhe aparecia, de tempos em tempos. Nunca mais a vira. O que estará lendo? Tinha até medo de pensar nesse assunto. Para não continuar alimentando maus sentimentos em relação à moça, gostava de imaginá-la lendo Paul Friedlander, o tijolo de Giovanni Reale, os comentários de Proclo. De tanto imaginá-la nesse bom caminho, um dia sonhou que a encontrara na praça de alimentação do shopping com a Platonis Opera de Burnet sobre a mesa. Aquela capa azul-claro, que ele tanto namorara no site da Amazon, combinou incrivelmente com o vestidinho com que ela estava. Era evidente, para ele, que ela não o escolhera para combinar com a capa. Aquela coincidência – ou, antes, aquela bela harmonia – indicava que a ordem universal lhe acenava. Por isso – estamos num sonho, não se esqueça –, ele tomou coragem e passou próximo da mesa dela. Ela estava só. Seus olhares se cruzaram. Uma intimidade antiga pareceu tomar subitamente os dois, como se já fossem amigos de longa data. Ela puxou a conversa. Ele se sentou na cadeira vazia. Tocar o volume azul-claro na mesa, que ele tanto desejava, deixou-o tão feliz, que, depois que acordou, evidentemente frustrado por não ter conseguido, sequer nos sonhos, levá-la ao cinema (pois o despertador tocou antes de que pudesse fazer a proposta), não conseguiu apurar se a sua rápida – se bem que plena – felicidade tinha origem na intimidade repentinamente manifestada entre ele e a moça ou na posse plena, se bem que fugaz, do primeiro volume da edição das obras completas de Platão no original em grego.
No final das contas, concluiu, ainda na cama, a felicidade é um estado de espírito composto por um conjunto de impressões que nos levam à unidade da experiência mística.
Ele teve quase certeza de que Platão não aprovaria essa sua opinião matutina. Entendeu, bem por isso, que precisava parar de criar teorias sem fundamento e começar a ler o mestre a sério.
Professor,
considera os dois primeiros livros – Mais Platão Menos Prozac e Platão em 90 minutos – essenciais para se iniciar Platão?
Na verdade, não, Sérgio. A menção aos dois livros foi só uma brincadeira a respeito da forma como muitas pessoas começam. Penso que o caminho que o protagonista segue é o melhor. Ou seja, começar com alguma questão concreta e ir avançando aos poucos através dos livros que vou mencionando. O “Platão em 90 minutos” foi apenas um exemplo de tantos livros de divulgação que os leitores usualmente lêem no começo. Eu acho que eles não prejudicam, mas é preciso avançar.
Professor, tive a impressão de que o senhor se inspirou um pouco no Kundera, no início do texto, mas, o nosso herói percorreu um caminho tão longo, que até Dale Carnagie ficaria expantado ao ver Sócrates pelas ruas de Atenas, influenciando as pessoas, rsrs. Então, não sei ao certo das inspirações para o texto, já que foram tantas as assossiações. No fim, o amor platónico do nosso rapaz não se concretizou nem mesmo nos sonhos, por conta do despertador. Males da modernidade. Assim, acredito que ele tenha percebido que, sair da caverna, é difícil e que o primeiro dislumbre diante da luz, cauza ardencia nos olhos. Abraços
Olá, César. Ainda não li nenhum livro inteiro do Milan Kundera! Ainda pretendo escrever a continuidade dessa história do jovem “platônico”.
Amei a história! Por favor, quando continuar a história publique.
Legal, Beatriz. Pretendo continuar, sim!
“O dia em que completou sua biblioteca platônica ficou em sua memória para sempre: foi numa sexta-feira chuvosa. (…) Chegando em casa no final da tarde, colocou o último volume na estante. Era como se acabasse de montar um quebra-cabeças de mil peças.”
Meditando um pouco sobre estes duas passagens fui às lágrimas. Deve haver algo de muito misterioso, sublime e até mesmo iniciático nos gestos físicos de recolher a “herança sem testamento” de um sábio antigo, da primeira ida do personagem à biblioteca em busca de um comentador moderno de Platão, ao último volume colocado na estante, completando a jovem coleção de sua obra completa.
Mas indo direito ao assunto, tenho uma pergunta, motivo de minha inoportuna visita ao seu site. Sendo o senhor procurador, a minha pergunta é: as leituras e afazeres de um promotor, de um juiz, de um procurador, não sobrecarregaria um aspirante a intelectual highbrow? Um zé-das-couves não teria a vantagem de sobrecarregar, no seu cotidiano, somente o seu corpo, conservando suas forças mentais exclusivamente para o trabalho intelectual desinteressado de motivos profissionais? Faço esta pergunta já um pouco duvidoso da frase “Não existem perguntas idiotas, existem idiotas que não perguntam”, mas a minha curiosidade é mais forte. Abraços!
Sim, as leituras e as tarefas profissionais sobrecarregam muito; e reduzem muito o tempo que um profissional pode aplicar aos estudos independentes. Mas não vejo como “vantagem” ter ou não ter uma profissão. Sua mensagem passa a impressão de que há uma competição na vida de estudos, mas verdadeiramente não é disso que se trata. Além disso, por experiência própria, quando prestava concursos, e tirava férias para estudar, sempre e sempre rendia menos em comparação ao período em que estava trabalhando. O cumprimento de um dever cotidiano auxilia na organização do tempo de estudos. É isso o que pude concluir!
“Sua mensagem passa a impressão de que há uma competição na vida de estudos, mas verdadeiramente não é disso que se trata.”
Isto parece-me uma ideia viciosa, mas ela está entranhada em mim. Vira e mexe um diabinho me assinala a suposta superioridade do mais versado sobre o menos. Sua conclusão me fez reler um trecho sublinhado específico d’A Vida Intelectual sobre a tensão saudável que há entre as obrigações e os estudos. Já passou da hora de eu reler este livro para ver se aprendo alguma coisa, pois percebo que ainda estou muito longe do caminho reto. No mais, muito obrigado pela resposta, querido, foi muito útil. Agora, volto para a toca de onde sai, e até!
Boa sorte!