A quem a vida de estudos independentes é indicada?

Todos os homens, por natureza, tendem ao conhecimento.
Aristóteles, Metafísica, 980a20).

É compreensível que a inclinação do homem ao conhecimento venha originando, já há mais de dois milênios, a criação e o desenvolvimento de instituições de ensino. As instituições conseguiram, nos seus melhores momentos, reunir alguns dos melhores professores; e permitem a adoção sistemática de métodos de ensino que, devidamente testados e gradativamente modificados, tendem a dar, na média, os melhores frutos possíveis.

Porém, em seus piores momentos, as instituições se transformam em máquinas de imprimir diplomas e de certificar, com algum grau de falsidade ideológica, pretensas habilidades intelectuais de que seus alunos efetivamente não se adonaram.

As instituições de ensino (em geral certificadoras de conhecimento — em alguns casos com monopólio e exclusividade garantidos pelo Estado) são tão onipresentes hoje em dia que a algumas pessoas pode jamais ter ocorrido pensar que a relação professor-aluno nasceu (e ainda vive, essencialmente) como relação de dois seres humanos colocados, por sua presença dramática (bem ao gosto de José Ortega y Gasset), diante da realidade. Professor e aluno, sem intermediários, constituem-se como tais pela capacidade que o mestre possui de presentificar o objeto do conhecimento (ou de servir-lhe de canal) diante de um aluno mortalmente interessado em compreendê-lo. As instituições permitem dar alguma racionalidade a essa atividade que nasceu e sobrevive, na sua essência, fora delas.

É natural, por isso, que você, brasileiro da segunda década deste século, insatisfeito com o que aprendeu no colégio ou na faculdade, queira complementar (ou, em casos mais dramáticos, verdadeiramente recomeçar) seus estudos de maneira independente.

A vida de estudos independentes é repleta de riscos e de frustrações que é preciso conhecer e saber contornar, tanto quanto isso for possível. Mas é, provavelmente, o único caminho, hoje, para quem deseja ser um discípulo fiel dos primeiros pensadores gregos, que viam no conhecimento (e, mais especificamente, na atividade filosófica) o modo de vida mais nobre e mais caracteristicamente humano que há (veja você, a esse respeito, por exemplo, Pierre Hadot, A Filosofia como maneira de viver, É Realizações).

Desses riscos e frustrações, podemos tratar em outra oportunidade. Quero, aqui, identificar: i) o que é, propriamente, essa tal vida de estudos, hoje; ii) e quem são esses insatisfeitos que a buscam.

Antes, uma preliminar: o estudioso independente a quem me refiro, e com quem geralmente convivo e dialogo, é aquele acostumado com a noção de vida intelectual cunhada por A.-D. Sertillanges (cf. A Vida Intelectual, É Realizações). Ele e Jules Payot, por exemplo (O trabalho intelectual e a vontade, entre outros), são de uma época em que os estudos independentes eram chamados de trabalho. Nas duas últimas décadas, essa atividade tem interessado, especialmente, a alunos ou a simples admiradores do prof. Olavo de Carvalho (é evidente que há, além disso, instituições de cunho religioso ou esotérico — ou simples agrupamentos de pessoas, de quaisquer natureza — que investem energias no ensino, à margem do sistema oficial, daquilo que lhes interessa). Atualmente, isso é tema que faz muita gente torcer o nariz. Aquilo que até meados do século passado era o feijão com arroz dos intelectuais em qualquer parte do ocidente hoje é coisa, por exemplo, de extravagantes alunos de um professor que a academia brasileira apedreja e demoniza; aquilo que até então convivia (perfeita e necessariamente) com uma atividade acadêmica rigorosa que permitia e exigia constantes momentos de busca solitária hoje é tratado como uma esquisitice que só é suportada porque vive às margens de nosso sistema de educação reconhecido e gerido pelo Ministério da Educação.

A relação do aprendizado com as instituições oficiais, entretanto, não costuma estar entre as primeiras preocupações do estudante independente, porque sua meta é aprender algo de verdade, independentemente do reconhecimento ou das maldições que lhe serão destinados pelo vulgo. As referências a que estudante independente recorrerá, para aferir o bom andamento de seus esforços, não lhe são impostas por decreto ou pelos diretores das instituições, mas são eleitas por si próprio, guiado por sua forte inclinação em direção ao efetivo conhecimento e por seu senso prático.

Se a vida de estudos independentes não visa necessariamente à aquisição de um diploma, nem a um posto específico no mercado de trabalho, nem a fazer brilhar na calçada da fama os poucos estudantes que perseveram na longa travessia noite adentro, para que, ó raios, então, serve esse negócio?

Bom. Parece evidente que, não sendo coisa de puros espíritos, nem de santos já elevados à dignidade dos altares, a vida de estudos deve ter algo a ver com a vida prática, sim senhor.

Sim, essa é uma boa pista, sem dúvida.

Uma das diferenças mais claras entre o tesouro prometido pelas instituições de ensino e aquele oferecido ao longo de uma vida de estudos independentes está naquilo que se tem mais proximamente em vista. As instituições de ensino estimulam, regra geral, a concepção de que o aluno é considerado aprovado numa determinada disciplina se – e somente se e tão somente se – conseguir comprovar seu aprendizado perante seu mestre, o que é um outro modo de dizer que o resultado imediato pretendido (para não dizer o único resultado pretendido, para quase todos os estudantes) é a aprovação pelo professor (ou a aprovação no vestibular ou a aprovação no exame profissional). O juízo positivo do mestre (ou das bancas examinadoras) é o tesouro buscado, grosso modo, pelos alunos. Tardiamente descobrem, alguns, que o mestre não era o fim do aprendizado, mas seu mero instrumento. Por sua vez, a vida de estudos independentes não tem foco no mestre, mas no próprio estudante, que caminha, quase sempre solitário, diante de uma realidade cuja estrutura ele busca desvendar no todo ou em parte. Se essa última característica soou a clichê, isso deve ser debitado na conta dos colégios e das faculdades que dizem, invariavelmente, ter foco no aprendizado, foco no aluno (“aqui o que importa é você, alunoetc). Todos sabemos que isso não passa, na maioria dos casos, de conversa de publicitário. O ensino institucionalizado chegou ao seu limite e não serão palavrinhas mágicas que o salvarão de sua derrocada (vide, por exemplo, o precioso clássico de Ivan Illich, Sociedade sem escolas).

O propósito de uma vida de estudos pode ser expresso na ideia que Viktor Frankl (cf. Em busca de sentido, Editora Vozes) tinha de vocação (ou de sentido da vida) — como aquilo que, pelas mais variadas razões, só você pode fazer. Quero dizer com isso que a vida de estudos independentes pretende atualizar no indivíduo as forças intelectuais, adormecidas ou já patentes, que, salvando suas circunstâncias pessoais, colaborarão para que ele exerça sua vocação e cumpra, dessa forma, o sentido único da sua vida.

Eis, aí, um desafio e tanto.

Como o sentido da vida é pessoal (e único e intransferível), a vida de estudos também terá essa nota. Isso quer dizer que a sua vida de estudos terá a fórmula (com seu ritmo, seus atalhos, suas paradas e suas paisagens) que tiver sua vocação.

A quem a vida de estudos independentes é indicada? Eis a pergunta que o título deste texto prometeu responder. Concluamos, pois, essa prosa.

Ora, os estudos independentes são indicados àqueles que já compreenderam que a realização do sentido da própria vida é seu dever máximo; e que, por variadas circunstâncias, não encontraram, nas instituições de ensino, instrumentos suficientes para a atualização das forças intelectuais capazes de auxiliá-lo no cumprimento de sua vocação.

Como esses estudos serão conduzidos (se serão feitos independentemente dos estudos institucionais, paralelamente a eles, ou mesmo em parcial concorrência com a busca de um emprego que lhe dê o sustento material) é questão secundária que não pode desviá-lo do caminho.

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Respostas

  1. Obrigado pelo texto, Professor!

    Pessoalmente, creio que o ensino institucional é uma farsa, uma enorme e pesada máquina retroalimentadora, que amputa a inteligência, esteriliza o solo interior, e condena a maioria dos alunos ao embrutecimento, formando míopes quanto ao belo e o bom.

    A escola e universidade provê escolarização e “credenciais sociais”, não educação.

    A boa notícia é que existem meios de escapar da hipnose coletiva.

    Ps – o site está ótimo ! Parabéns.