O retrato de um homem quase-sábio: ‘Memórias de Adriano’, de Marguerite Yourcenar

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Publius Aelius Hadrianus

O que dizer de Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar? Material para longas divagações não falta, sem dúvida. Mas terminamos a leitura desse livro com a sensação de que o melhor a fazer, em relação a ele, seria deixar que o próprio Adriano conduzisse nossas reflexões críticas.

Adriano — ou Publius Aelius Hadrianus governou Roma entre 117 e 138 d.C. Foi sucessor de Trajano, que por sua vez governou entre 98 e 117 d.C. O livro é uma longa correspondência, fictícia, imaginária, escrita por ele, em seus últimos dias de vida, dirigida a Marco Aurélio, que seria imperador 23 anos depois.

Devo reconhecer desde logo: fui com muita sede ao pote. E o livro não era tudo o que eu esperava. É, sem dúvida, um grande livro. O trabalho de pesquisa que o fundamentou é justificativa suficiente para que nos debrucemos alguns dias sobre ele. Mas me parece prudente registrar um conselho: não esperem tê-lo na conta dos dez melhores livros da sua vida. Se você começar a lê-lo com essa ressalva, tenho certeza de que o apreciará melhor.

Por que então o livro deve ser lido? Porque a leitura de Memórias de Adriano nos coloca em contato, nas palavras da autora, com “o retrato de um homem quase sábio”; indica-nos as suas reflexões sobre as pequenas e as grandes coisas do dia a dia de um guerreiro, de um imperador, de um homem preocupado com os destinos de um império em plena atividade de conquista; mostra-nos as angústias de dois processos sucessórios da Roma Imperial: a transmissão do poder de Trajano a Adriano e a de Adriano a Antonino Pio; é complementado pelas excelentes notas da autora — notas que registram seu processo de criação e notas sobre as centenas de fontes consultadas para a consolidação das Memórias. Por fim, é um exame de consciência, se bem que fictício, feito com a sinceridade possível e com riqueza de detalhes, por um homem em seu leito de morte.

Tenho comigo a edição íntegra do Círculo do Livro, tradução de Martha Calderaro, capa dura, com 296 páginas, sem data. Provavelmente foi impresso no final da década de 80. Comprei-a pela Estante Virtual de um sebo de Santo André, SP. Em benefício da verdade devo registrar que este foi o meu segundo exemplar. O primeiro, já distante de mim, serviu para confirmar a sabedoria do tio de um amigo de infância: ‘quem empresta livros é louco; minha biblioteca é composta majoritariamente de livros que me emprestaram’.

Com um ritmo de leitura de cem minutos diários, o livro pode ser lido em seis dias.

Quem é Marguerite Yourcenar? Valho-me aqui de parte da introdução feita em 1988 por Shusha Guppy, para a entrevista que a autora concedeu à Paris Review:

Marguerite Yourcenar nasceu em 1903 numa família aristocrática franco-belga (Yourcenar é um anagrama incompleto de seu nome real de família, Crayencour). Sua mãe morreu de febre puerperal pouco depois de seu nascimento, e ela foi criada pelo pai, um grande leitor e viajante, que lhe ensinou latim e grego e lia os clássicos franceses com ela. Eles viveram em vários países da Europa, e ela aprendeu inglês e italiano.

Marguerite Yourcenar publicou dois volumes de poesia na adolescência, ‘que são francamente oeuvres de jeunesse que não devem ser republicadas’. Suas duas novelas, Aléxis e Golpe de misericórcia, surgiram em 1929 e 1933, respectivamente (tempo no qual ela viveu na Grécia), e foram aclamadas pela crítica. em 1938, ela conheceu Grace Frick em Paris, que mais tarde ‘traduziu admiravelmente’ três de seus principais livros. Quando veio a guerra em 1939 e ela não pôde retornar à Grécia, foi-lhe oferecida hospitalidade nos Estados Unidos por Grace Frick, ‘já que ela não tinha meios de viver em Paris’. Para se sustentar, aceitou um emprego de professora na Sarah Lawrence. Começou também a escrever sua obra-prima, Memórias de Adriano, que foi publicada em 1954″.

A Paris Review diz que o livro foi publicado em 1954; na minha edição consta que a publicação ocorreu em 1951.

Para a autora, Memórias não é um ‘romance histórico’, mas “um monólogo sobre a vida de Adriano, conforme poderia ter sido vista por ele próprio”. Segundo suas próprias palavras, “o tratado-monólogo era um gênero literário comum nesse período e que outros além de Adriano o fizeram.”

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“Nas piores horas de desencorajamento e de inércia, ia rever, no belo Museu de Hartford (Connecticut), uma tela romana de Canaletto, o Panteão, tons escuros e dourados recortando-se no céu azul de um fim de tarde de verão. Ao sair, sentia-me sempre tranquila e reanimada.”

Além do próprio Adriano, somos apresentados a alguns personagens ao longo da narrativa. Marco Aurélio, destinatário silencioso das memórias, escritas em forma de uma longa carta; sua esposa Sabina, com quem mantinha um casamento frio e pouco movimentado; o imperador Trajano, a quem sucedeu no trono, e sua esposa Plotina — com quem Adriano manteve uma relação de confiança e de auxílio mútuo ultrapassou a vida do marido. Antínoo, jovem amante de Adriano; que se suicidou; Chábrias e Arriano, funcionários mais próximos de Adriano; os traidores Celso, Palma, Nigrino e Quieto; Akiba e Simão, líderes judeus; Serviano, que Adriano cogita fazer seu sucessor; seu cunhado, casado com sua irmã Paulina. Adriano, porém, mata-o, por suspeita de que ele tramava contra si um golpe; Lúcio, a quem Adriano também imaginou fazer seu sucessor; nomeia-o governador da Panônia, mas ele morre no dia de sua apresentação ao Senado; Antonino, que Adriano nomeia seu efetivo sucessor.

É preciso registrar aqui uma advertência: Adriano não era um cristão. Era um cidadão de Roma apaixonado pela Atenas dos tempos áureos. Somente um ser humano demasiadamente circunscrito aos limites da filosofia helenística poderia dizer algo como: “Distingo perfeitamente, nesta multiplicidade e nesta desordem, a presença de uma pessoa, mas seus contornos parecem traçados quase sempre pela pressão das circunstâncias, e seus traços baralham-se tal como acontece com uma imagem refletida na água. Não sou daqueles que dizem que suas ações não se parecem com eles. Pelo contrário. É imprescindível que se pareçam comigo, porque são minha única medida e o único meio de me delinear na memória dos homens, ou na minha própria, pois que a impossibilidade de continuar a exprimir-se e a modificar-se pela ação é talvez a única diferença os mortos e os vivos”. Mas somente uma alma aberta às auroras que hão de nascer é capaz de prosseguir dessa forma — com isso salvando o que o texto tinha de pequeno: “Mas entre mim e esses atos de que sou feito existe um hiato indefinível. A prova disso é que experimento continuamente a necessidade de pesá-los, explicá-los e deles prestar contas a mim mesmo. (…) Três quartos da minha vida escapam, aliás, a essa definição pelos atos: a soma das minhas veleidades, dos meus desejos e até dos meus próprios projetos permanece tão nebulosa e fugidia como um fantasma. O resto, a parte palpável, mais ou menos autenticada pelos fatos é apenas um pouco mais distinta. E a sequência dos acontecimentos é tão confusa como a dos sonhos.” Sim, o texto está salvo, mas não a filosofia. Não é a um filósofo que ouvimos, entretanto, mas a um imperador. Perdoemos seus momentos de sombra, pois haverá aqui e ali momentos de boa luminosidade.

A família de Adriano tem raízes no território espanhol, mas ele sabe que “[o] verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos: minhas primeiras pátrias foram meus livros. Em menor escala, as escolas.” Adriano é um homem experimentado, mas é ao mesmo tempo um verdadeiro aprendiz. Um aprendiz convicto, que “[g]ostava das relações estranhamente íntimas e singularmente indefinidas que existem entre professores e alunos, como um canto de sereia no fundo de uma voz trêmula que, pela primeira vez, nos revela uma obra prima, ou nos dá a conhecer uma ideia nova.” O seu amor ao aprendizado superava o fascínio que tinha pela beleza dos homens, pois “[o] maior sedutor não é, afinal, Alcibíades, mas Sócrates.”

Homem extremamente disposto a aprender com tudo e com todos, Adriano passa as primeiras cinquenta páginas traçando um perfil pessoal: “Quanto à observação de mim mesmo, a ela me obrigo não só para  entrar num acordo com o indivíduo junto do qual serei obrigado a viver até o final, como também porque uma intimidade de quase sessenta anos comporta não poucas probabilidades de erro. No fundo, meu conhecimento de mim mesmo é obscuro, interior, informulado e secreto como uma cumplicidade.” Seus exercícios de observação de si mesmo e dos homens deu-lhe uma interessante visão de mundo: “Não desprezo os homens. Se o fizesse, não teria o mínimo direito, nem a mínima razão para tentar governá-los. Eu os reconheço vãos, ignorantes, ávidos, inquietos, capazes de quase tudo para triunfarem, para se fazerem valer mesmo aos seus próprios olhos, ou, muito simplesmente, para evitarem o sofrimento. Sei muito bem: sou como eles, pelo menos momentaneamente, ou poderia ter sido. Entre outrem e mim, as diferenças que percebo são por demais insignificantes para contarem na edição final.”

A seguir, começa a nos relatar a ascensão de Trajano ao poder, na época em que era seu primeiro-tenente. Faz observações agudas a respeito do imperador e de sua ânsia por conquistar novas terras. Muito próximo dos acontecimentos que moldavam a vida de povos inteiros, Adriano não prezava a ‘filosofia de homem livre’, que lhe causava imenso tédio, mas buscava “uma técnica através da qual pretendia alcançar o ponto em que nossa vontade se articula com o destino e onde a disciplina secunda a natureza, em lugar de contê-la.” É, sem dúvida, um exercício de calculada aceitação da realidade. Calculada, sim, porque mesclada com seu oposto: “Mesmo em meio a meu pior desastre, vi o momento em que o esgotamento lhe subtraiu uma parte do seu horror quando o tornei meu, concordando em aceitá-lo. (…) Foi dessa maneira, com uma mistura de prudência e audácia, de submissão e revolta cuidadosamente calculada, de extrema exigência e prudentes concessões, que acabei finalmente por aceitar-me a mim mesmo”.

Por ser muito próximo do imperador, Adriano casa-se com uma sobrinha-neta de Trajano, um enlace arranjado por sua esposa Plotina. Porém, Adriano não deixou de cultivar seus amantes, que a cidade reprovava — devassa ela mesma, a sociedade não gostava que seus governantes fossem libertinos. Um casamento de aparências, como é evidente. Adriano, porém, não se fixava nesse detalhes da paisagem ao longo da qual projetava sua carreira política. Era um homem atento e focado, diríamos hoje; chegou a trabalhar como ghost writer para figuras públicas da época, tarefa que lhe deu uma visão abrangente dos temperamentos dos homens e dos mecanismos em razão dos quais eles pensavam como pensavam.

Em sua convivência com Trajano, chamava-lhe a atenção a ânsia do imperador por conquistar novos territórios na Ásia; e o modo como esse objetivo o rejuvenescia: “Desgraçadamente, eram belos esses sonhos. (…) A fascinação, à qual o imperador envelhecido se entregava como um sonâmbulo, Alexandre já a experimentara antes; chegara quase a realizar esses mesmos sonhos, e deles morrera aos trinta anos!”

É a minha opinião: as reflexões de Adriano sobre os últimos anos da vida de Trajano valem a leitura do livro. Mas há mais. Aqui as minúcias estragariam a resenha e a tornariam chata. Destaco, entre tantos pontos, alguns dignos de atenção: o processo sucessório de Trajano, permeado de intrigas e de suspeita de assassinato, a ascensão de Adriano ao trono (quando então pôde dizer: “Minha própria vida já não me preocupava: podia novamente pensar no resto da humanidade”), as suas tentativas de reduzir as conquistas territoriais romanas e de celebrar a paz com alguns povos, a contenção violenta de um início de golpe, os confrontos com os judeus de Jerusalém, suas reflexões sobre os ascetas e sobre os cristãos da época, a tendência que o povo manifestava de tratar os governantes como deuses, a distância que as pessoas em geral guardam dos homens em posição de autoridade, as obras que construiu (as Muralhas no Norte da Grã-Bretanha, o Odeon em Roma, entre outras) e seu próprio processo sucessório, repleto de idas e vindas que terminaram com a nomeação de Antonino.

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Muralhas de Adriano, em vista parcial

O livro é um grande projeto de pesquisa de Marguerite Yourcenar. O que ela buscava? “Tornar uma vida conhecida, acabada, fixada (tanto quanto possa sê-lo) pela história, de modo a abranger com um único olhar a curva inteira; mais ainda, escolher o momento em que o homem que viveu essa existência a avalia, a examina, e por um instante chega a ser capaz de julgá-la. Fazer de modo que ele se encontre perante a sua própria vida na mesma posição que nós.” Mas não apenas isso. Ao longo do processo, as circunstâncias acabaram obrigando-a “a tentar preencher não somente a distância que me separava de Adriano, mas sobretudo aquela que me separava de mim mesma.”

Essa aproximação que a autora buscou ter com Adriano deu-lhe a certeza de que “se pode reduzir à vontade a distância dos séculos”. Convenhamos que essa descoberta não é nenhuma novidade para os cristãos, acostumados que estão com a Comunhão dos Santos de hoje e de ontem.

Em uma das entradas do Caderno de notas que acompanha o texto das Memórias, a autora diz que “[b]em depressa compreendi que escrevia a vida de um grande homem. Desse momento em diante, impôs-se maior respeito pela verdade, maior atenção e, de minha parte, maior silêncio.”

Antes, porém, que o silêncio se imponha sobre nós e sobre o corpo sem vida de Adriano, ouçamos o que ele disse à sua própria alma pela última vez:

“Pequena alma, alma terna e inconstante, companheira do meu corpo, de que foste hóspede, vais descer àqueles lugares pálidos, duros e nus, onde deverás renunciar aos jogos de outrora. Por um momento, contemplemos juntos ainda os lugares familiares, os objetos que certamente nunca mais veremos… Esforcemo-nos por entrar na morte com os olhos abertos…”

É uma bonita imagem para um pagão. Que antes da Revelação Cristã Sócrates pudesse conceber a vida e a morte dessa forma é perfeitamente compreensível; que Adriano ainda pense assim 520 anos depois, nem tanto. Sigamos, entretanto, o conselho do próprio imperador: concordemos em aceitá-lo. Eis o homem, transformado naquilo que ele foi: um filho adotivo, evidentemente tardio, da Grécia que ele tanto admirava. E que nós não nos imaginemos muito superiores a ele: dezenove séculos depois continuamos todos sendo, em parte, filhos tardios da Grécia.

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