O que faz um escritor

rainer
Rainer Maria Rilke

As pessoas têm certa dificuldade de entender o que um escritor faz e que função a escrita desempenha em sua vida. A tal ponto que lhes é incompreensível a sugestão que Rainer Maria Rilke deu em suas “Cartas a Um Jovem Poeta”: antes de decidir seguir a carreira literária “confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever?”

À pergunta ‘o que faz um escritor’ seria fácil responder com uma tautologia: ora, o escritor é aquele que escreve. Essa resposta, entretanto, não resolve o nosso problema. Tentemos uma aproximação.

O escritor é uma espécie de artista da palavra. Trabalha-a em meio ao conjunto de toda sua experiência, a experiência que ele conhece e da qual se lembra e aquela que apesar de ter caído no esquecimento ou de nunca ter sido verbalizada o constitui no ser. A maioria das pessoas usa a linguagem como uma reverberação de seus estados físicos e emocionais; o escritor busca usá-la como reverberação de sua pessoa inteira – de suas memórias, de sua imaginação, de seus projetos em andamento ou já irrevogavelmente frustrados. Se a maioria das pessoas escreve com o corpo e, no máximo, com pedaços de sua alma, o escritor deve buscar escrever com a sua vida inteira. E isso não é pouco. E poucos são os que alcançam esse estado em que a pessoa inteira – em alguns casos um país inteiro, gerações inteiras, a humanidade inteira! – se derrama em prosa ou em poesia nas páginas de um livro.

Mas, então: ser escritor é uma profissão? Pode ser. E pode não ser. Em regra, não é. Joseph Conrad, Goethe, Machado de Assis, Guimarães Rosa e toda uma boa parte dos escritores consagrados foram profissionais da escrita, mas tinham uma segunda profissão que com muita frequência lhes fornecia dinheiro para seu sustento e matéria para seus livros. E outros tantos passaram a se dedicar exclusivamente à escrita a partir de determinado ponto de suas carreiras.

Há um grande número de escritores amadores, entretanto, que não se profissionalizam. O que é uma outra forma de dizer: não tomam a decisão, que faz toda a diferença, de passar de tentativas mais ou menos bem-sucedidas de expressar suas impressões para uma atividade criativa dotada de alma, técnica e sentido. Todo profissional, em todas as áreas, teve de tomar essa decisão um dia: a decisão de deixar de ser amador – sem porém deixar de ser ‘amante’ do ofício.

O escritor, profissional ou amador, é um criador de vozes. Reverbera sentimentos habitualmente silenciados. Dá voz a quem não a tem. Dá contornos mais vivos a coisas, a lugares e a sentimentos. Por isso, nos ensina a ver. Ensina-nos também a falar. O que é a poesia senão, como disse Bruno Tolentino, “um modo memorável de dizer”?

Há certamente muito mais a dizer sobre os escritores e sobre seu papel. Para esgotar o assunto seria preciso falar também dos modos pueris e desastrados de exercer esse ofício. E isso me lembra uma das primeiras anistias – senão for mesmo a primeira – da Literatura Ocidental. No final da Odisséia, quando retorna a Ítaca e descobre as baixezas que os pretendentes de Penélope fizeram durante sua ausência, Ulisses decide eliminá-los todos. Poupa, porém, o poeta autor e cantor dos versos que animavam, distraíam e instruíam os homens, inclusive durante o seu exílio pelos mares distantes. Ao final todos temos a sensação de que foi uma decisão sábia. Pois os escritores – poetas e prosadores – são imprescindíveis.

(Publicado no Diário do Rio Doce, em 21.04.2015).

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