O livro para em pé; mas, e o homem? (Pessach: A Travessia, de Carlos Heitor Cony)
Narrativa autobiográfica das experiências de Carlos Heitor Cony no começo do Regime Militar de 1964, Pessach: A Travessia (lançado em 1967, hoje reeditado pela Companhia da Letras) conta o seu involuntário ingresso e a sua rápida participação em um grupo de guerrilheiros empenhado em derrubar o governo. Segundo se diz, o livro instaurou entre o autor e o Partido Comunista brasileiro uma inimizade que, dessa forma, o colocou numa espécie de limbo ideológico (eis que ele também foi, evidentemente, um crítico do Regime Militar).
A história começa no dia em que Paulo Simões completa quarenta anos de idade. O tom meio niilista lembra, como alguém já disse, o clima geral de O Estrangeiro, de Albert Camus. Divorciado e com uma filha matriculada em um colégio de freiras, Paulo é convidado por um conhecido a engrossar as fileiras de uma organização de esquerda que se armava e se articulava para, com muito sangue e pólvora, defenestrar os milicos do poder. A princípio, Paulo recusou, disse que não tinha interesse em pegar em armas (apesar de ter prestado serviços ao exército por um breve período e, nessa condição, ter adquirido alguma experiência com elas); disse que preferia continuar assinando abaixo-assinados de variada ordem e forma que eram frequentemente levados à sua porta por atrizes amadoras engajadas em animar protestos.
Porém, nos dias seguintes é perseguido por uma integrante do grupo e, por circunstâncias que não chega a dominar completamente, vê-se refém de pessoas que até então não conhecia (e cuja conduta e ideologia deplorava), escondidas, em treinamento e expectativa, em um bunker camuflado em uma pequena fazenda na região sul-fluminense.
A metáfora da travessia é tomada de empréstimo da história do povo hebreu. De ascendência judaica, Paulo Simões (na verdade, Paulo Simon) viu a sua própria história como uma repetição inconsciente da história de seus antepassados. Porém, não há aqui nenhum Moisés; e a terra prometida no pano de fundo desse enredo — isso é claro como a luz do Sol — é uma mentira comprovadamente macabra que levou à morte, no século XX, cem milhões de pessoas.
A travessia de Paulo Simões é uma fantasia que o submeteu à servidão voluntária em benefício de um bizarro guerrilheiro revolucionário que atendia pelo nome de Macedo — e que chefiava o grupo no qual acabou caindo de para-quedas. Se Macedo era o então “Moisés brasileiro”, então, meus amigos, meus inimigos, era bem o tempo de fechar o boteco e pedir asilo em qualquer país mais civilizado que o nosso. Porém, não é assim, felizmente. Toda a sandice em que Paulo Simões se meteu logo terminou, como um sonho ruim interrompido no começo da madrugada, com a morte de seus novos amigos. Ele, só, sobrevive. E pode então, como quem acorda desse sonho sem saber o quê nem por quê, voltar a escrever seus textos e a levar sua vida morna.
O que dizer da leitura? A mim não foi, em tudo, proveitosa. Mas nem tudo são lágrimas. O livro deu-me uma boa noção das modalidades das relações pessoais travadas dentro das organizações esquerdistas que se formaram entre os anos de 1964-85 (e, também, um pouco antes desse período, como hoje se sabe). O autor fez questão de discernir as nuances dos diversos grupos armados e entre esses e o Partido Comunista (que, segundo ele, preferia lutar no campo das ideias, até que o regime se aniquilasse a si mesmo por falta de sustentação).
Diz-se que Cony resistiu em autorizar, em 1997, a reedição de seu livro; mas que, depois de meditar um pouco, concluiu que o livro “se mantinha de pé”. É verdade. O livro se mantém de pé. E essa metáfora é muito interessante precisamente porque a impressão que se tem ao lê-lo é que o protagonista é incapaz de se manter em pé, firme; que segue ao sabor dos ventos que o levavam daqui para ali com muita facilidade.
Paulo Simões não é um homem digno da maior admiração (talvez seja o Cony que depois amadureceu). É um brasileiro comum, ordinário, com seus medos e com suas glórias vãs. Se sua história merece ser lida é porque ela é narrada com a possível isenção por parte de alguém que não parece interessado em dar a definitiva razão a nenhum dos lados dessa batalha entre o bem e o mal que se instaurou no Brasil de então. A ninguém pretendeu dar razão, exceto a si mesmo, evidentemente. O livro não deixa de ser, bem por isso, uma apologia de si mesmo e de suas escolhas. A pergunta que cabe fazer, entretanto, ao final do romance é: era esse homem insosso (ou, pelo menos, que é dessa forma retratado no livro) capaz de alguma escolha fundamentada? A mim parece que não. Essa é a impressão que o livro me deixou: a de um homem desenraizado que é facilmente carregado por qualquer vento imprevisto.
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