O itinerário de uma vida que se desenha à sombra de desencontros: ‘A Servidão Humana’, de W. Somerset Maugham

Servidão Humana é o livro mais conhecido de William Somerset Maugham. Publicado em 1915, narra o fim da infância, a juventude e o começo da vida adulta de Philip Carey, um órfão, criado pelos tios no interior da Inglaterra na virada do século XIX para o XX, que sai em busca de conhecer o mundo e de se movimentar, nem sempre ileso, no meio de suas atormentadas paixões.

Por que se deve ler o livro? Em primeiro lugar, o livro nos apresenta três notáveis personagens femininas: Mildred, Norah e Sally. Cada uma delas nos marca de uma forma diferente. Mas todas nos deixam fortes impressões. Elas estão aí nas ruas, nos bares, em nossas vidas e fora delas. É preciso ter um olhar treinado para encontrá-las e um coração suficientemente aberto para compreendê-las. Depois, há Philip, um jovem manco sem muito gênio e sem muita sorte, que perdeu a mãe aos nove anos, que não conviveu com o pai e que é criado por um tio rigoroso e relativamente insensível. Deve-se ler o livro para compreender o valor da liberdade, mas principalmente para entender que ‘ser livre’ é algo mais complexo do que nos dizem os manuais de Direito Constitucional. Por fim, para descobrir que a generosidade é a joia da alma e que a amizade é o motor de muitas de nossas transformações.

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Este é William Somerset Maugham

O autor da obra nasceu em Paris, em 1874, filho de uma rica e nobre família inglesa. “Perdeu os pais com dez anos de idade, passando a viver com um tio na Inglaterra. Fez os primeiros estudos na King´s School de Canterbury e depois viajou para a Alemanha, matriculando-se na Universidade de Heidelberg. O ambiente cultural e artístico despertou-lhe a vontade de escrever, ideia veementemente recusada pelo tio. Assim, retornou à Inglaterra e propôs-se a estudar medicina em Londres, com a esperança de dedicar-se secretamente à literatura. O êxito alcançado pelos primeiros romances levou-o a abandonar a medicina para dedicar-se apenas à literatura” (trecho da apresentação do autor na edição da Editora Abril). O autor começou a escrever Servidão Humana aos 37 anos e o concluiu quatro anos depois.

Para Otto Maria Carpeaux, “Maugham deve a imensa popularidade ao seu grande talento de narrador, ao humor tipicamente inglês e, antes de tudo, à capacidade de fazer o leitor acreditar no que conta. Quase sempre fala na primeira pessoa do singular: é franco como um amigo fidedigno e dá ao leitor a ilusão de conhecer, com ele, a vida e o mundo, o vasto mundo” (História da Literatura Ocidental, p. 2.290).

A edição que tenho em casa é a da Editora Abril, da série ‘Grandes Sucessos’, de 1982. Está dividida em dois volumes, de 314 e 247 páginas, totalizando 561. A tradução é de Antônio Barata. Não tenho o que reclamar dela, com a exceção do descolamento de algumas páginas. Se você busca uma edição nova, provavelmente encontrará a da Editora Globo, que na verdade é a mesma tradução acrescentada de um prefácio de Carlos Vogt.

Mantendo um ritmo de cem minutos de leitura diária, o livro pode ser lido em quatorze dias.

Os personagens de maior destaque, além do próprio protagonista, Philip Carey, são os seguintes: Helen, a mãe de Philip, que começa o livro em seu leito de morte; Sr. William Carey, tio de Philip, vigário protestante em Blackstable, pequena cidadezinha do interior da Inglaterra; sua esposa, Sra. Carey, tia de Philip e que lhe apresenta pela primeira vez os livros que o despertarão para a arte e para a literatura; Hayward, poeta idealista e levemente religioso que Philip conheceu em Heldelberg, e com quem manterá relação de amizade; Srta. Wilkinson, moça solteira conhecida de seus tios, com quem Philip tem um caso de verão; Fanny Price, confusa e miserável estudante de artes em Paris com quem Philip tem uma inquietante afinidade; Cronshaw, poeta maldito que lhe apresenta ‘o enigma do tapete persa’, e que morre desgraçado em um quarto da pensão do próprio Philip; Mildred Rogers, garçonete desprezível e sem atrativos físicos ou intelectuais por quem Philip se apaixona loucamente; Griffths, amigo de Philip, estudante de enfermagem, que o ajuda em sua doença e se relaciona com Mildred; Norah Nesbit, viúva jovem, escritora amadora, com quem Philip tem uma relação amorosa rápida porém harmoniosa; Sr. Athelny, foi paciente de Philip e se tornou seu amigo; Sally, filha de Athelny a quem Philip pede em casamento ao final do livro; e Dr. South, médico morador de uma vila de pescadores com quem Philip faz residência e de quem planeja ser sócio.

diacinzaO começo de tudo: a morte da mãe e o resto da infância em Blackstable. A narrativa começa aos nove anos de Phillip, com a morte de sua mãe no parto do segundo filho, que também não se salva. O livro começa sombrio:

O dia rompeu cinzento e triste. As nuvens pairavam pesadamente, e havia no ar certa aspereza que era uma promessa de neve. Penetrando no quarto em que dormia uma criança, a criada cerrou as cortinas, após lançar um olhar maquinal à casa fronteira, um prédio revestido de estuque com colunas no portal, e caminho em direção ao leito.

— Acorde, Philip, disse ela.

Puxando as cobertas, tomou-o nos braços e desceu as escadas. Philip ia ainda meio adormecido.

— Sua mãe deseja vê-lo — acrescentou a criada;

Abriu, em seguida, a porta de um quarto no andar térreo e conduziu a criança até a cama em que jazia uma mulher. Era a mãe do pequeno. Era a mãe do pequeno. Estendeu os braços para o filho, que se aninhou ao seu lado sem perguntar por que razão o tinham acordado”.

É dessa forma, meio desacordado, em um dia cinza, triste, próximo de uma mãe que já se despedia da vida, que Philip nos aparece. Com a morte da mãe, o menino é mandado para uma antiga vila chamada Blackstable, aos cuidados da mordoma Ema e de seu tio, Sr. Carey, irmão de seu pai e vigário de uma igreja protestante. O pai de Phillip, Henry Carey, foi um médico bem-sucedido a ponto de causar inveja na própria família. Na casa dos Carey, Philip levava uma vida muito regrada. Seu tio se irritava com suas brincadeiras e pequenas desordens. Tentava estimulá-lo a decorar partes da liturgia, mas ele se chateava e se sentia pressionado. Chegava a chorar. Sua tia então lhe apresenta livros com figuras da Terra Santa, que ele então passa a gostar. Daí à literatura é apenas um passo. Até que seus pais de criação decidem mandá-lo para o King’s School, de Tercanbury.

Sua passagem pela escola em Tercanbury. Na escola vive o que toda criança viveu: amizades e rivalidades, atenções e desatenções dos mestres e diretores. Chega a ser ridicularizado por conta de seu pé torto. Um dos reitores, Sr. Perkins, pegou afinidade com Philip e acaba convencendo-o a optar pela ordenação sacerdotal.

Os tempos dourados de Heidelberg. Apesar da expectativa de seus tios, e do próprio reitor, Philip decide deixar a escola e se organiza, com a ajuda meio contrariada de seus parentes, para ir para a Heidelberg, onde se hospeda na casa de um casal conhecido de sua família, que tinha duas filhas. O chefe da casa é o Sr. Erlin, que dava lições de alemão e de latim a Philip. Lá ele conhece o inglês Mayward, filho de um juiz, que tentou carreira jurídica em Londres, mas que desistira de tudo e fora para a Alemanha ‘para ler Goethe no original’. Aos poucos o rapaz foi ficando fascinado pelas leituras selecionadas que Mayward lhe apresentava com muito entusiasmo. Apesar disso, Mayward era ridicularizado por muitos, primeiro por ter ‘cara de poeta’, por viver a vida despreocupadamente e sem compromissos ou responsabilidades. Mayward e Weeks, um americano professor de grego, tinham largas discussões, em que o segundo quase sempre vencia. Philip a tudo assistia. As discussões sobre religião levantavam questões sobre o relativismo das crenças.

Em um de seus retornos para casa de seus tios, Philip conheceu a Srta. Wilkinson, uma moça de trinta e poucos anos que aos poucos começou a lhe parecer atraente. Ela gosta muito de conversar com ele e o incentiva a ir a Paris, aprender coisas sobre a arte e, também, a tratar as mulheres. Esse ‘romance de verão’ atordoa Phillip, que aos vinte anos começa então a se lançar às conquistas amorosas. Sua amante não é atraente e, com o tempo, começou a lhe causar transtornos. Primeiro porque ele se desencantou dela ao vê-la vestida despretensiosamente em seu quarto. Era menos bela do que lhe parecia. Segundo, porque ela se apaixonara por ele e começava a lhe cobrar um compromisso a que ele não estava disposto a se entregar.

Breve experiência em um escritório de contabilidade em Londres. Philip é encaminhado para Londres, onde começa a trabalhar em uma firma de contabilidade. Lá se respira o comércio. Conheceu seus chefes, Sr. Carter e Sr. Goodworthy; e o estagiário Watson, filho de um proprietário de uma indústria de cerveja. Bon vivant, o rapaz saía com muitas garotas. Philip, por sua vez, passava os finais de semana sozinho em Londres, entediado. Ele não demonstra nenhum progresso na firma. Uma carta de Hayward lhe anima a ir para Paris estudar arte. Ele não resiste: desliga-se do escritório e vai para Paris.

Longa temporada em Paris: a escola de artes. Começa a estudar em Paris em uma escola de artes. Tem companhias para as refeições e ouve muitas discussões sobre arte. Conhece a Srta. Price, que o ajuda nas primeiras lições; faz amizades com Clutton, Flanagan, Watson, todos colegas de turma. Conhece o poeta Cronshaw e tem a sensação de que ‘tem em si a semente do gênio’.

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‘A Grande Odalisca’, de Dominique Ingress (1814)

As discussões entre os colegas da escola de arte são permeadas de opiniões apaixonadas sobre a técnica da pintura e as novas tendências. Dois dos pivôs de algumas das inúmeras discussões são ‘A Grande Odalisca’, de Dominique Ingres (1814 — acima) e ‘Olympia’, de Edouard Manet (1863 — abaixo).

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‘Olympia’, de Edouard Manet (1863)

Fanny Price, sua colega de ateliê, é uma nulidade no desenho e na pintura, mas se acha a maior das artistas. Não tem autocrítica e zomba de todos os que não a reconhecem como grande artista. Philip já começa a perder a paciência com ela, que de resto é muito instável. Philip começa a desconfiar que a Srta. Price gosta dele. Mas ela é intragável. Mal-educada e intratável. Pede que lhe diga o que pensa de seus quadros, mas não aceita uma opinião levemente negativa. A moça acaba se suicidando em seu próprio apartamento.

O primeiro quadro que Philip submete a um concurso é rejeitado. Ele então começa a entender que não tem genuíno talento e que ser um pintor de segunda ordem não valeria a pena. Pede uma apreciação a seu mestre e professor Foinet e recebe um desencorajamento: é melhor tentar a vida em outra coisa.

Na sequência recebe a notícia de que sua tia faleceu. Foi então a Blackstable ajudar o tio. Em conversa com ele, relata sua decisão de largar a pintura e decide cursar medicina.

Philip inicia o curso de Medicina em Londres. Conhece Mildred Rogers. Com seu colega de faculdade Dunsford, logo no início do curso, Philip conhece Mildred, garçonete de uma casa de chá que primeiramente chamou a atenção de seu amigo. Ela era insolente e não lhes dava conversa. Ele retorna ao local para ir à desforra com ela. Faz-lhe um desenho, que ela gosta. Mas depois volta a lhe menosprezar. Ele A convida para o teatro. Ela vai, como vai com qualquer um. Ele não compreende porque a ama. Passa a encontrar-se com ela com maior regularidade. Ela começa a se abrir. O clima entre eles é de certa disputa e irritação.

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“Of Human Bondage”, filme de 1934, com Bette Davis no papel de Mildred Rogers

Ocorre que Mildred também estava saindo com um alemão de nome Miller. Philip fica possesso de ciúmes; e descreve seu amor incompreensível por Mildred:

“Era como se estivesse morto. Era esta mesma fraqueza que sentia agora. Amava aquela mulher como jamais havia amado. Pouco lhe importavam os defeitos físicos ou de caráter, parecia-lhe amá-los também. Pelo menos nada significavam para Philip. Era como se aquilo nada tivesse a ver com ele; sentia que tinha sido arrebatado por alguma força estranha que o impelia contra a sua vontade e contra os seus interesses. E porque tivesse a paixão da liberdade, odiava as cadeias que o prendiam. Riu sozinho ao pensar o quanto havia ansiado por uma paixão assoberbante. Amaldiçoava-se agora por ter cedido a ela. Lembrou-se do começo; nada de tudo aquilo teria acontecido se ele não tivesse ido com Dunsford à casa de chá. tudo fora culpa sua. Não fosse sua ridícula vaidade, nunca teria dado importância àquela vagabunda mal-educada”.

A relação de Philip com Mildred é de amor e ódio, interesse e provocação, desdém e procura. Eles não têm muita intimidade e nem assuntos em comum, mas Philip tem muito ciúmes dela. Ela continua a sair com outros homens. Phillip fica possesso e chega a usar de autopiedade para comovê-la. Eis uma amostra da contradição dos sentimentos de Philip:

“Poderia ele voltar a interessar-se por todas as coisas que amara? Fora dedicado à leitura, mas agora os livros para ele não tinham significação; passava as horas de lazer na sala de fumar do clube do hospital; folheando revistas intermináveis. Aquele amor era um tormento e Philip se ressentia amargamente da sujeição em que ele o mantinha. Estava prisioneiro e suspirava pela liberdade. (…) Embora desejasse Mildred como um doido, desprezava-a. Pensava de si para consigo mesmo que não podia haver no mundo maior tortura que amar e ao mesmo tempo desprezar”.

Philip decide que somente se libertará dessa angústia fazendo de Mildred sua amante. É a privação sexual que o atormenta. Ela não correspondia de modo algum a seus intentos lascivos. Para ele, a posse completa de Mildred era o único modo de se libertar. Chega a pensar em casar-se com ela, e conclui: “Por Deus que, se ela casa comigo, vai pagar-me tudo o que tenho sofrido”.

Até que Mildred conta a Philip, no meio de um jantar romântico, que vai se casar com Miler, cuja renda chegar a sete libras por semana. Foi um choque para ele, que então perdeu a vontade de lhe acompanhar até sua casa. Philip constata que seu amor por Mildred começou por conta de seu orgulho ferido; e que isso era a causa de sua infelicidade.

Hayward o visita Londres e, com ele, Philip descobre que estava há muitos meses sem contemplar a beleza, sem absorvê-la. Com a presença de Hayward, Philip começou a perceber a maluquice de sua paixão por Mildred Rogers, e de sua fraqueza em tê-la aceito.

Philip conhece Norah Nesbit. Philip foi convidado a um encontro de Lawson com uma modelo, que tinha uma amiga, Norah Nesbit, uma viúva de 25 anos, com um filho. Ela escrevia romances de terceira categoria. Acolheu Philip com muito carinho e se apaixonou por ele. Ele, por sua vez, gostava de sua companhia e ficava muito feliz em sua presença. Philip gostava de Norah de um modo especial, por seus predicados especiais. Ela expõe a sua filosofia de vida, religiosa mas não propriamente católica.

Narrativa dos benefícios que Norah proporcionava a Philip e da modalidade de sua relação:

“Phillip teve o senso de compreender a sua ventura. Parecia-lhe que Norah lhe dava tudo quanto uma esposa pode dar, deixando-lhe ainda a liberdade; considerava-a a amiga mais encantadora de quantas tivera e ao mesmo tempo encontrava nela uma simpatia que não achara em homem algum. As suas relações sexuais não eram senão o elo mais forte daquela amizade. Contemplavam-na, mas não eram essenciais. E porque os sentimentos de Philip estivessem satisfeitos, ele se tornou mais sereno e de convívio mais fácil. Sentia-se na plena posse de si mesmo. Pensava às vezes no inverno durante o qual vivera obcecado por uma hedionda paixão, e enchia-se de aversão por Mildred e de horror por si próprio”.

Philip cai doente. E encontra em seu vizinho Griffiths um excelente companheiro e médico. Assusta-se com a gentileza do rapaz, que aos poucos começa a cativá-lo.

Mildred se separa de Emil e procura Philip, que então se vê tão apaixonado como antes. Ele a consola e já não acha graça em encontrar-se com Norah, que entretanto lhe procura. Mildred revela que não se casou com Emil coisíssima nenhuma, pois ele já tinha mulher e três filhos. Quando o próprio chefe, instado pela esposa, o colocou na parede, ele buscou se desvencilhar de Mildred; a separação acabou se consumando depois que ela apareceu grávida. Philip combina como ajudará Mildred, inclusive financeiramente.

Philip vai visitar Norah pensando que ela estará furiosa com o seu sumiço. Só que ela o acolhe com entusiasmo. Philip compara Norah a Mildred, e diz que racionalmente a primeira era sua escolha natural, mas que de fato amava a segunda:

“Mas, em última análise, o que importava era amar, mais do que ser amado. E ele ansiava por Mildred com toda a alma. Preferia passar dez minutos com ela a ter uma tarde com Norah. Dava mais apreço a um simples beijo de seus lábios frios do que a tudo quanto Norah lhe pudesse oferecer.

‘Isso está acima das minhas forças’, pensou ele. ‘Trago-a no sangue.’

Pouco lhe importava que ela não tivesse coração, que fosse viciosa e vulgar, obtusa e cúpida. Amava-a Preferia sofrer ao lado de uma a ser feliz junto da outra.”

Philip se vê entre a cruz e a espada e tem de faltar a um compromisso já feito com Norah, para passar o domingo com Mildred. Norah finalmente se irrita com as justificativas evasivas que Philip lhe oferece e lhe diz que “nesse caso não precisas vir nunca mais”.

Porém, ao perguntar o que Mildred gostaria de fazer no domingo, descobre que ela já tinha compromisso e que não o deixaria por Philip. Fica evidente que Philip não tem a menor noção do ridículo que está passando, tratando Mildred como uma princesa quando é apenas uma moça simplória e sem bom senso.

Seu rompimento com Norah deixa os leitores estupefato. Ela chora e maldiz o mundo e a vida. Como ele pode agir assim? — é o que nos perguntamos. Ele está dominado por uma menina vulgar que não o ama absolutamente!

Nasceu a filha de Mildred, que ela planeja doar a alguma camponesa, que remunerará para cuidar dela. Philip a acompanha em todo o trabalho de parto e chega a conviver com a menina como se fosse sua filha.

Philip apresenta Mildred a Griffiths. Ambos se dão muito bem, a ponto de causar-lhe ciúmes. Chegam a ter uma relação fugaz, iniciada em uma danceteria na presença do próprio Philip. Griffiths manda uma carta apaixonada para Mildred. Ela a mostra para Philip, que na época esperava passar um mês com ela em Paris. Ela, porém, diz que não quer, que não consegue vê-lo como nada mais que um bom amigo. Philip sugere que Mildred e Griffths passem um final de semana juntos. Ele espera que a paixão deles passe rápido. Neste ponto da narrativa, certamente a vontade do leitor é dar uma surra em Philip.

Mas a paixão de ambos não passa assim tão rápido. Mildred não retorna para casa. Philip decide passar uns dias em Blackstable com o tio, onde tudo está na mesma, como sempre esteve. De volta a Londres, ele decide mudar-se para  Kennington. Ele visita Norah, esperando encontrar nela o aconchego dos velhos tempos, mas conhece seu noivo, o Sr. Kingsford. Ele fica surpreso e frustrado. Ela é amável com Philip, mas já está comprometida. Lamentável. A vida tem dessas coisas.

Através de um amigo, Philip fica sabendo que Griffths teve problemas para se desvincular de Mildred, muito pegajosa. Philip, por sua vez, perdeu contato com ela, que desapareceu na grande Londres.

Ele então prossegue os estudos e se surpreende vocacionado ao exercício da medicina. Visita Cronshaw e vê como o amigo está debilitado, doente, à beira da morte. E decide levá-lo para a sua própria casa. O poeta aceita, mas zomba, com seu editor, Upjohn, do aspecto burguês de Philip. Uma vez morto, Philip lhe faz o enterro, com a companhia do editor, que eleva a fama do poeta às alturas e quer que seu enterro seja como o de um príncipe. Mas como Philip está com as economias reduzidas, pouco faz para satisfazer o capricho de Upjohn.

Início da amizade com Thorpe Athelny. Início do fim da relação com Mildred. Philip faz amizade com um paciente, de nome Thorpe Athelny, pai de nove filhos, de bons modos e conversador, que morou em Toledo. Vai à sua casa e conhece sua família. O homem lhe faz confidências sobre sua vida passada, sua ex-mulher etc. Fica amigo dos filhos de Athelny, que passam a lhe tratar por Tio Philip.

Philip encontra Mildred por acaso perto da Picadilly Circus. Ela está se prostituindo, mas tenta esconder dele essa circunstância. Eles vão para um quarto. Ela chora e deplora essa vida que vem levando. Ele então tem a ideia de colocá-la para substituir a senhora que lhe arruma o quarto e faz a comida. Pagará a ela o que paga à senhora. Ela, feliz, aceita. Ele fica muito feliz e exultante pelo seu gesto. Morará no quarto ao lado do dele, com a filha, que buscou em Brighton por falta de condições financeiras de mantê-la com a cuidadora. Ele diz que não quer com ela nada mais que uma amizade. De fato, ele percebeu que não a ama mais. Seguramente não a ama mais, diz, e até sente certa repulsa física por ela.

Mildred insinua que que algo mais do que ser cozinheira e empregada de Philip. Mas ele é enfático e não lhe dá chance. Philip submete-se a uma cirurgia para tentar corrigir o defeito dos pés, chamado de pé equino ou ‘talipes equinus’. Vão passar alguns dias em Brighton, mas ele faz questão que durmam em quartos separados. Ela chora e faz cena dizendo-se envergonhada de ser submetida àquela situação. Oh, céus!, pensa o leitor. Ambos vivem como um casal e é assim que Mildred os apresenta a todos. Que mulher estranha!

Philip recebe uma carta de Athelny convidando-o para um fim-de-semana juntos. Ele encontra no amigo um aconchego, uma amizade, uma felicidade nova. Lembra da família unida, dos filhos, da esposa. E gosta da ideia de tê-los conhecido:

“Agora Athelny convidava-o a passar um dia com eles: desejava transmitir-lhe certas meditações sobre Shakespeare e sobre o copofone. Além disso as crianças estavam reclamando a presença de tio Philip. (…) Teve saudade daquela gente. Tinham os Athelny uma qualidade que ele não se lembrava de ter encontrado em outras pessoas, e que era a bondade. Só agora percebia isso, mas era evidentemente a beleza daquela bondade que o atraía. Em teoria não acreditava em semelhante coisa: já que a moral era simples questão de convivência, bem e mal não tinham sentido. Não gostava de ser ilógico, mas tinha ali diante de si uma bondade simples, natural, espontânea, e ele a achava bela. A pensar nessas coisas, rasgou a carta em pedacinhos. Não via como ir sem Mildred e não queria ir com ela.”

Philip sente que as despesas começam a apertar. E Mildred faz corpo mole para arrumar emprego. Ela planeja um modo de fisgar a atenção e o amor de Philip, de reconquistá-lo. Acredita que se tiver um filho dele provavelmente ele falará em casamento. Ela tenta um contato à noite depois de uma saída dele com os amigos. Mas ele se esquiva e diz que não consegue vê-la sem pensar em Emil e em Griffths. É o ponto de ruptura. Rejeitada, ela fica possessa e agride verbalmente a Philip. Antes de chamar-lhe de aleijado, diz: “Nunca me importei contigo. Nem uma vez! Sempre te fiz de bobo. Tu me enojavas, me matavas de tédio. Eu te odiava. Se não fosse por dinheiro nunca haverias de me tocar. Sentia vômitos quando era obrigada a deixar que me beijasses. Nós ríamos de ti, eu e Griffiths, ríamos porque eras um trouxe. Trouxa! Trouxa!”

Quando no dia seguinte Philip voltou do trabalho, encontrou seu apartamento todo quebrado. Mildred levara sua filha e destruira com uma faca e um martelo por tudo o que pôde. A casa de Philip destruída é um símbolo dessa alma atormentada e fraca que habita o corpo sem graça e insosso de Mildred.

Depois da raiva, ele se sente aliviado e pede a Deus que nunca mais veja Mildred, embora fique consternado pela lembrança da criança. Decide mudar-se para um lugar ainda mais barato, perto do seu trabalho. Vende seus bens destruídos a preço de banana.

Breve fase de penúria financeira. Philip investe uma boa grana na bolsa de valores, incentivado por seu amigo Macalister. Esperava o fim da guerra, que não veio. Perdeu dinheiro. Ficou sem grana e arriscou-se a não poder continuar os estudos. Pediu ajuda ao tio, que lha recusou, dizendo que seus conselhos não haviam sido seguidos.

Ele está sem dinheiro, ferrado, dorme dias seguidos na rua, tomando banho em estações de trem. Não pode pedir ajuda a seu tio ou ao advogado do inventário de seu pai, pois eles lhe jogariam na cara suas escolhas. Começa a procurar emprego em lojas de departamento, mas não tem experiência. Passa fome.

Vai almoçar na casa dos Athelny, que já estão sabendo de sua situação — foram ao seu quarto e descobriram que não aparecia há dias e que devia aluguel. Propõem-lhe que passe a morar com eles até arranjar algo. Ele se comove, esboça não aceitar, mas não tem alternativa. A família o acolhe no quarto de um dos filhos.

Por indicação de Athelny, Philip consegue um emprego baixo na empresa em que ele próprio já trabalhava. Receberá seis xelins por semana, mais moradia e alimentação. Consegue pagar o aluguel em atraso, com a ajuda da Sra. Athelny, e compra um fraque, que será seu uniforme de trabalho. Ele começa a trabalhar como indicador de lojas. Mistura-se aos trabalhadores e a seus costumes social-proletários. Dorme em um alojamento e vai à aos bailes sociais. Sente-se só é triste no meio dessa gente.

Philip deseja muito a morte de seu tio, pois assim poderá receber uma boa herança. Pensa, porém, que o tio poderá descumprir o trato e deixar seus bens para a paróquia. Se isso acontecer, ele diz, só lhe restará o suicídio, a única fonte de alívio que consegue imaginar.

Hayward morre de disenteria em uma viagem. Philip se defronta a morte e com o sentido da vida, já que o amigo morreu sem ‘produzir’ nada. E mais, reflete sobre a aparente desnecessidade dos esforços vitais:

“Que desproporção entre o esforço e o resultado! As brilhantes esperanças da juventude tinham de ser pagas ao preço amargo da desilusão. Como a dor, a doença e a desgraça pesavam na balança! Que significava tudo aquilo? Pensou em sua própria vida, nas vivas esperanças com que havia entrado nela, nas limitações que lhe eram impostas pelo corpo, na falta de amigos e na ausência de afeição que lhe haviam cercado a juventude. Sempre fizera o que lhe parecia melhor, mas que fracasso o seu! Outros homens, sem maiores vantagens que ele, triunfavam, e outros ainda, com muito mais predicados falhavam! Parecia uma questão de sorte. A chuva caía tanto sobre o justo como sobre o ímpio, e para nada neste mundo havia motivo ou causa”.

Ao pensar sobre o tapete persa de Cronshaw, ele tem de súbito uma intuição de seu significado: a vida não tem sentido: “É indiferente que ele nasça ou não nasça, viva ou deixe de viver. A vida é insignificante e a morte sem consequência. Philip exultou como tinha exultado na infância, quando o peso da crença em Deus lhe fora tirado dos ombros. Parecia-lhe que alijava agora a última carga de responsabilidade. E, pela primeira vez, senti-se supinamente livre. Sua insignificância se transformava em força e ele se sentia de súbito um igual do destino cruel que parecia persegui-lo. Porque, se a vida não tem sentido, o mundo fica despojado de sua crueldade. O que ele fizesse ou deixasse de fazer nada significava. O fracasso não tinha importância e o êxito redundava em nada.”

Vai visitar seu tio e volta com a esperança de que ele morra logo. Continua visitando a família de Athelny. Mildred manda uma carta para Philip, pedindo sua presença. Ela estava doente. Ele a examina. Receita um medicamento e convive com ela três semanas. Depois de segui-la, descobre que ela continua se prostituindo. Se irrita e se afasta; nunca mais a viu.

Falecimento de seu tio. Philip vai passar o Natal com o tio; é recebido pela governanta, Sra. Foster, e o encontra já moribundo. Um tanto ansioso por ver a cor da herança, Philip chega a pensar como seria fácil para ele abreviar a vida do tio. De volta a Londres, recebe nova carta da Sra. Foster dizendo que seu tio está nas ultimas. Se quiser vê-lo em vida, seira preciso que fosse imediatamente. Philip pede as contas da empresa e parte para Blackstable. Ao chegar lá, vê que o tio está melhor. Em poucos dias, porém, o dia pede a presença do sacerdote, que lhe traz a comunhão. Morre dias depois. Philip herda todos os bens e volta a cursar medicina. Mexendo nas coisas do tio, encontra uma carta da mãe:

“Meu caro William,

Stephen escreveu-te agradecendo as tuas felicitações pelo nascimento do nosso filho e pelos bondosos votos que fizeste a meu respeito. Graças a Deus estamos ambos de boa saúde e eu me sinto profundamente agradecida por essa mercê. Agora que posso segurar a pena, quero dizer-te e à querida Luísa o quanto estou sinceramente grata a ambos por todas as bondades que tiveram para comigo desde o meu casamento. Vou pedir-te um grande favor. Stephen e eu queremos que sejas o padrinho do menino, e esperamos que aceites. Sei que não estou pedindo pouca coisa, porque tenho certeza de que levarás muito a sério as responsabilidades do encargo, mas espero ansiosamente que o aceites porque és um representante da Igreja, além de tio do pequeno. Muito me preocupo com o bem-estar dele e rogo a Deus dia e noite para ele ele venha a ser um cristão bom e honesto. Com o teu conselho para o guiar, espero que se torne um soldado da fé em Cristo e seja todos os dias de sua vida temente a Deus, humilde e piedoso.

Tua irmã afeiçoada,

Helen”

E se assusta com o tom piedoso da mãe e da distância em que ele foi parar do desejo dela. Em seu retorno a Blackstable, vai a Tercanbury e visita sua antiga escola, a King’s  School. Tem certa nostalgia e pensa na sua vida de ontem e de então.

Em sua prática médica, Philip começa a perceber a diferença de hábitos entre a gente pobre e os mais abastados. O hospital é para ele uma fonte de experiências sociológicas, com o pé no chão da realidade.

Philio começa a se interessar pela filha de Athelny. Repara que Sally, filha de Athelny, é uma moça diferente. Certamente há implícito aí um desejo de ambos, mas que ainda não foi formulado:

“Sally estava agora moça feita. Trabalhava como aprendiz num atelier de costura de Regent Street e todas as manhãs às 8 ia para o serviço. Tinha olhos azuis de expressão franca, testa larga e cabelos bastos e brilhantes. Era robusta, de ancas largas e seios fartos. O pai, que gostava de discutir-lhe a aparência, advertia-a constantemente de que não deva engordar. A rapariga atraía porque era sadia, animal e feminina. Tinha muitos admiradores, mas eles a deixavam imperturbável. Dava ela a impressão de considerar como uma tolice os assuntos amorosos. Compreendia-se facilmente que os rapazes deviam achá-la inacessível. Sally tinha o espírito de uma pessoa mais velha do que a sua idade. Estava acostumada a ajudar a mãe nos trabalhos de casa e no cuidado das crianças, de sorte que adquiriu assim um ar autoritário que fazia a Sra. Athelny dizer que Sally gostava muito de fazer o que lhe vinha à cabeça. A moça era calada, mas à medida que crescia dava a impressão de ir adquirindo um tranquilo senso de ridículo, e às vezes fazia uma observação por onde se via que, por trás daquele exterior impassível, ela estava sossegadamente a divertir-se com o próximo. Philip notou que com ela nunca havia chegado a essa intimidade afetuosa que tinha com o resto da numerosa família de Athelny. De quando em quando, a indiferença da rapariga deixava-o levemente irritado. Havia nela qualquer coisa de enigmático”.

O Dr. South, com quem Philip está estagiando como assistente em Farnley (uma cidade distante de Londres), o convida para uma sociedade. Ele fica tentado a aceitar a excelente oferta, mas acaba declinando. É que ele planeja terminar o estágio no Hospital São Lucas, passar alguns meses na Espanha, passando, e depois ir para o Oriente, empregar-se como médico de bordo em algum navio. Ninguém gostava de ser assistente do velho Dr. South, mas a relação dele com Philip foi excelente. O velho, viúvo e brigado com a filha, sentiu uma afeição paternal por Philip. Despedem-se.

Início da relação com Sally. E Philip vai passar duas semanas em Kent, onde os Athelny se dedicam, em férias, à colheita de lúpulo. É uma atividade familiar de que participam inclusive as crianças. Sally foi comprar chá à noite e Philip a acompanhou. Na volta, eles se beijam. Sally demonstra um sentimento de proteção em relação a Philip. Ela trata seus irmãos como se fosse seus filhos.

Sally está gostando de Philip e lhe convida a um novo encontro. Ele não compreende por que ela está tão interessada nele:

“– Queres que eu vá hoje de noite passear contigo, depois de pôr os meninos na cama?

— Quero, sim.

— Então espera-me lá na cerca. Eu vou quando ficar pronta.

Ele ficou a esperá-la sob a luz das estrelas, encostado a sebe. Em torno, as amoras silvestres rebentavam em frutos. da terra evolava-se o luxurioso perfume da noite e o ar sutil e parado. O coração de Philip batia doidamente. Não podia compreender o que lhe acontecera. Associava o amor a gritos e lágrimas veementes e não havia nada disso em Sally. Mas ele não podia saber que outra coisa, além do amor, a teria levado a entregar-se. Mas amor, paixão por ele? Não se surpreenderia se ela escolhesse o primo, Peter Gann, que era algo, esbelto e teso, com o rosto queimado de sol e as passadas longas e fáceis. ‘Que teria ela visto em mim?’, perguntava-se Philip. Não sabia se ela o amava da mesma  maneira por que ele encarava o amor. E contudo… estava convencido da pureza da rapariga. Tinha uma vaga intuição de que várias coisas se haviam combinado, coisas pelas quais ela se deixara influenciar inconscientemente.”

Sally aparece com suspeita de gravidez. Philip pensa a princípio em não interromper seus planos de ir para a Espanha. Mas se dá conta da família que o acolheu com tanto carinho e decide, de si para si, casar-se com Sally: “E agora tinha acontecido aquilo! Afastou logo a possibilidade de que Sally estivesse enganada. Sentia uma estranha certeza de que seus temores eram fundados… Afinal de contas, era tão provável… Qualquer pessoa podia ver que a natureza havia construído aquela rapariga para ser mãe.”

Com a gravidez na cabeça, planeja morar na aldeia de pescadores e viver a vida ao lado de sua esposa. Tudo isso é pensado e repensado antes mesmo de lhe fazer pessoalmente a proposta de casamento. Philip fantasia muito:

“O presente de núpcias que daria à esposa seriam todas as suas grandes esperanças. Renúncia! Enlevado pela beleza desse gesto, Philip passou todo o serão a pensar nele. Estava tão agitado que não pôde ler. Teve a impressão de que o arrastavam para a rua. Subiu e desceu Birdcage Walk com o coração pulsando de alegria. Mal podia conter a sua impaciência. Queria ver o contentamento de Sally quando ele lhe fizesse a proposta. Se não fosse tão tarde, teria ido procurá-la naquele mesmo momento. Já se imaginava nos longos serões que passaria com ela, na sala de estar tão confortável, com as cortinas ainda levantadas para que pudessem ver o mar. Ele, ocupado com os seus livros; ela, curvada sobre o trabalho; e a lâmpada velada tornava-lhe ainda mais belo o rosto adorável. Falariam sobre o filho, que ia crescendo, e, quando ela erguesse o rosto para ele, seus olhos lampejariam de amor. E os pescadores e as suas esposas, seus clientes, viriam a sentir uma grande afeição por eles, que, por seu turno, participariam das dores e prazeres daquela gente simples. Mas o seu pensamento voltava para o filho que seriam de ambos! Já sentia em si uma apaixonada devoção pela criança. Pensava em correr-lhe a mão pelos pequeninos membros perfeitos. Sabia que seria linda. E poria nela todos os  seus sonhos duma vida rica e variada.”

E reflete sobre os benefícios que extraiu de sua deformidade. E conclui que todo mundo tem seus próprios defeitos:

“Pensando na longa odisséia de seu passado, aceitava-a alegremente. Aceitava a própria deformidade que tão dura lhe tinha feito a vida. Sabia que ela lhe deformara também o caráter, mas percebia agora que graças a ela tinha adquirido aquele poder de introspecção que tanto prazer lhe dava. Sem isso, jamais teria possuído a sua aguda apreciação da beleza, a paixão da arte e da literatura, o interesse no variado espetáculo da vida. O ridículo e o desprezo de que tantas vezes fora alvo lhe haviam dado vida interior e feito desabrochar aquelas flores que, sabia-o ele, jamais perderiam a fragrância. Via, depois, que a normalidade era a coisa mais rara do mundo: todos tinham algum defeito de corpo ou de espírito. Lembrava-se de toda a gente que conhecera (o mundo inteiro se parecia com um hospital, não tinha pés nem cabeça). Via uma longa procissão deformada física e mentalmente, uns com doença do corpo, coração ou pulmões débeis, e outros com doença do espírito, fraqueza de vontade ou tendência para a embriaguez”.

Philip tem uma súbita compaixão pelas pessoas e é capaz de perdoá-las todas — inclusive a própria Mildred:

“Eram desamparados instrumentos nas mãos de um acaso cego. Podia perdoar a Griffiths e a sua traição e a Mildred a dor que lhe infligira. Eles não era responsáveis pelas suas ações. A única atitude razoável era aceitar a parte boa dos homens e ter paciência com as suas faltas. As palavras do Deus agonizante atravessaram-lhe a memória: Perdoai-lhes, Pai, porque eles não sabem o que fazem.”

Philip marca de encontrar-se com Sally, no National Gallery, a fim de pedir-lhe em casamento. Mas logo na chegada ela lhe revela que o alarme era falso. Ela não está grávida. Ele sente o seu mundo cair. E volta-lhe a possibilidade de ganhar o mundo em liberdade:

Uma sensação extraordinária o invadiu. Estava certo de que a suspeita de Sally era fundada e nem por um instante lhe ocorrera que houvesse uma possibilidade de engano. Todos os seus planos foram subitamente subvertidos e a existência, traçada com tanto cuidado, não era mais do que um sonho que jamais se realizaria. Estava livre uma vez mais. Livre! Não precisava desistir de nenhum de seus projetos e a vida ainda se achava em suas mãos para fazer com ela o que quisesse. Não sentia nenhum júbilo, mas apenas consternação. O coração lhe desfalecia. O futuro estendia-se diante dele numa vacuidade desolada. Era como se tivesse singrado a vastidão dos mares durante largos anos, por entre perigos e privações, para chegar finalmente a um porto seguro e, no momento de entrar nele, algum vento contrário se erguesse e o arrancasse outra vez para o largo. E, porque ele tivesse demorado o espírito nessas frescas pradarias e agradáveis bosques da terra, o vasto deserto do oceano enchia-o de angústia. Faltava-lhe ânimo para tornar a enfrentar a solidão e a tempestade. Sally observava-o com os seus olhos claros.”

Na sequência, ele a pede em casamento e ela aceita. Ele reflete sobre os desejos de seu coração, e os desejos que lhe foram inculcados pelos livros e pelas pessoas. E pensa que ter uma família é a melhor coisa que pode acontecer a um homem. Convenhamos, o rapaz teve uma excelente intuição.

“Phillip compreendeu que se havia iludido. Não era a intenção de sacrifício que o levara a pensar em casamento, mas sim o desejo de ter uma esposa, um lar e uma afeição. E agora que tudo isso parecia escorrer-lhe por entre os dedos, era tomado de desespero. Aquilo era a coisa que mais desejava no mundo. Que lhe importavam a Espanha e as suas cidades, Córdoba, Toledo, León? Que significavam para ele os pagodes da Birmânia e as lagunas das ilhas do Pacífico? A América estava ali mesmo, ao alcance da sua mão. Parecia0lhe que toda a sua vida aspirava aos ideais que outros, com as suas palavras e escritos, tinham inculcado nele, e nunca o desejo do seu próprio coração. A sua conduta fora sempre influenciada pelo que ele julgava dever fazer e não pelo que desejava de toda a alma. Agora, punha tudo isso de lado com impaciência. Vivera constantemente no futuro e o presente sempre lhe havia fugido. Os seus ideais? Pensou no desejo de formar um desenho complexo e belo com as miríades de fatos insignificantes da vida: não vira também que o desenho mais simples, aquele segundo o qual o homem nasce, trabalha, casa-se, procria e morre, era o mais perfeito? Podia bem ser que o abandonar-se à felicidade era aceitar a derrota; mas era uma derrota melhor que muitas vitórias”.

Eis o diálogo final:

“– Mas não queres casar comigo?

— Eu não casaria com mais ninguém neste mundo.

— Então está tudo resolvido.

— Mamãe e papai é que vão ficar admirados, não?

— Como eu me sinto feliz!

— E eu quero almoçar.

— Querida! Ele sorriu. Tomou-lhe da mão e apertou-a. Levantaram-se e saíram da galeria. Ficaram por um momento na balaustrada, a olhar para a Trafalgar Square. Táxis e ônibus deslizavam rápidos para baixo e para cima. Gente passava apressada em todas as direções. O sol brilhava.”

Esta é a história toda. O que pensar sobre tudo isso? Bom. Primeiro, uma advertência: a leitura de literatura de ficção nos recompensa com uma enorme quantidade de conteúdo que não somos capazes de expressar verbalmente. O que ‘pensamos’ sobre o livro depois de lê-lo é apenas uma tentativa, mais ou menos fracassada, de dar forma a esses sentimentos. Vejamos.

O livro levanta uma série de questões interessantes. Eis algumas sugestões — que esta resenha, entretanto, não chegará a trabalhar:

  • A principal delas: o que ligava Philip a Mildred? Que sentimento é esse que o fazia preferir dez minutos na presença dela a uma tarde com a adorável Norah? Que espécie de ‘servidão’ é essa e qual é o seu mecanismo?
  • Como é possível a existência de uma criatura como Mildred? Que objetivos a movem intimamente? Tem vida interior?
  • A morte prematura de Hayward nos comove. Um artista que se completava — e se contentava — com o usufruto da beleza. Certamente suas contemplações, a sua ‘vida interior’, como se expressava, gerou alguns frutos. Um deles foi o próprio interesse de Philip, que se não chegou a se encarnar nele pelo menos o conduziu, como tudo na vida nos conduz a algo, à bela intuição das últimas páginas: provavelmente ele estava levando uma vida baseada nas expectativas dos outros e não na sua própria. A vida de Hayward, para quem um trabalho remunerado causaria indesejados ruídos em sua ‘vida interior’, indica que a arte é o território em que os encontros e os desencontros de nossos caminhos devem ser meditados com frequência.
  • A família dos Athelny foi um agradável acontecimento na vida de Philip, órgão de pai e de mãe. Ter encontrado uma ‘estrutura’ montada daquela forma, em que a generosidade entre todos os membros se multiplicava e bastava para confortar aos que se aproximassem dela, foi um fator essencial para que ele se encontrasse a si mesmo em meio à atribulada vida ao lado de Mildred.
  • A vida de Philip pode ser lida através de sua relação com o corpo feminino. O livro começa em um dia cinza, triste, com Philip carregado para junto de sua mãe, acamada e já em vias de deixar a vida. Durante a narrativa, ele se apaixona perdidamente por Mildred, moça sem atrativos físicos que porém o domina absurdamente. A tensão é ‘resolvida’ quando Philip encontra Sally, jovem filha de uma casal relativamente estável, com vocação para a maternidade, com corpo corado e farto. A suspeita de que ela está grávida dele transforma seus planos e os dirige a um porto seguro. O Sol se faz. O romance termina quando eles deixam as obras da National Gallery e sentam-se, sob o Sol, para ver o movimento de pessoas e de carros na Trafalgar Square.
  • A educação religiosa que Philip recebeu de seu tio, o vigário de Blackstable, não foi capaz de influenciar o rapaz. Uma educação moralista, rígida, meio fria e impaciente, certamente não gerou como não gera frutos nos corações. Como seria o vigário de Blackstable ‘mais santo’?
  • Philip não herdou a virtude da Religião de seus pais de criação. Herdou da sociedade e de sua própria índole uma ética pagã inspirada no poeta Cronshaw: “Faça o que melhor lhe parecer, mas fique atento ao guarda da esquina”. Essa ‘ética’ torna o mundo melhor? O guarda da esquina é a melhor referência da melhor vida e da moralidade?
  • A fantasia de Fanny Price, estudante de artes em Paris, a levava a crer na sua superioridade artística. Fechava-se às críticas embora buscasse o parecer dos colegas sobre seus quadros. O que poderia ser capaz de ‘furar’ essa fantasia louca cuja agitação só a ‘corda apertada no pescoço’ foi capaz de aplacar?

Ao longo da leitura, vale a pena se perguntar:

  • Ao se dedicar às diversas atividades e ocupações, Philip estava indo em alguma direção clara ou era apenas ‘um átomo solto no ar’? Se estava, ele sabia que direção era essa?
  • Será verdade que o elo inicial entre Philip e Mildred foi o orgulho ferido dele?
  • Que estranhos elementos pesaram na decisão de Philip de inventar uma desculpa para furar um compromisso com Norah e passar um final de semana com Mildred?
  • Que sentimentos Norah nutria por Philip quando ele a visitou, depois do rompimento de ambos, e a encontra com o Sr. Kignsford, seu novo noivo?
  • Que papel a total ausência do pai de Philip, Sr. Henry Carey, desempenha na vida dele?

Pois bem. Servidão Humana é romance em parte autobiográfico. Philip é o Maugham trabalhado por sua própria imaginação — prova de que a literatura tem essa vocação de ‘consertar’ determinadas parcelas de nosso mundo e de nossa história. Não sou eu quem está dizendo isso. É o próprio autor quem o diz em seu Exame de Consciência: “Estava com quarenta anos. Se tencionava casar-me e ter filhos, era mais que tempo de o fazer, e por algum tempo diverti a minha imaginação com o espetáculo de mim mesmo no estado matrimonial. Não havia ninguém em particular com quem quisesse casar-me. Era a condição que me atraía. (…) Eu desejava liberdade e pensava que poderia achá-la no casamento. Concebi essa ideia quando ainda trabalhava na Servidão Humana, e, transformando os meus desejos em ficção como o querem os escritores, lá pelo fim tracei um quadro do casamento que desejaria ter feito. Os leitores em geral acharam-no a parte menos satisfatória do meu livro.” (p. 189-90).

O curioso é que eu, longe de ser um sentimental em busca finais felizes, achei o desfecho do livro uma maravilha — aquilo que efetivamente ‘salvou’ toda a narrativa carregada de desgraças e de infelizes contratempos. Ajudou muito que na cena final Philip e Sally estivessem sentados nas muretas em frente à National Gallery, de frente para a movimentada Trafalgar Square, em Londres.

Trafalgar Square and National Gallery, London, England, Europe
Trafalgar Square, Londres, cenário das últimas páginas de ‘A Servidão Humana’.

Deu-me uma sensação de que a arte e a civilização que ele tanto buscara integrar em sua vida estavam ali, de alguma maneira, contribuindo para  conduzi-lo em uma direção minimamente feliz, para desatá-lo das correntes da servidão que o ligaram fortemente à detestável e desprezível Mildred.

A trajetória de Philip o levou de um extremo a outro. O livro começa com um dia ‘cinzento e triste’, com nuvens pesadas, e com Philip meio sonolento junto ao corpo de sua mãe moribunda. Como se “aves pairassem no céu de chumbo e suas formas pretas lentamente se fossem diluindo na escuridão maior vinda dos montes e de meu próprio ser desenganado”; e termina com a máquina do mundo se abrindo, majestosa e circunspecta, com um sol a brilhar e com Philip junto ao corpo de sua amada Sally, tão viva e tão maternal. Com a vida inteira pela frente. Para curar-se da horrível paixão por uma mulher sem atrativos e desorientada, Philip encontrou em Sally uma jovem corpulenta, calma e generosa.

Apesar disso, a opinião de Carpeaux sobre a vida de Philip, narrada no livro, é a pior possível: “Se esta vida não tem sentido moral nem sentido algum, então é preciso dizê-lo. Foi o que Maugham, depois de muitos anos de atividade literária meramente comercial, fez no seu romance Servidão Humana: a vida de Philip Carey foi muito movimentada; mas não deu resultado nenhum. É uma das obras mais desoladas da literatura moderna, um magistral ‘estudo da solidão humana'” (idem).

Sim, Philip era um solitário, muitas vezes desgraçadamente solitário. Mas tenho dificuldade de entender o que Carpeaux quis dizer com ‘não deu resultado nenhum’. Ora, tudo começou a mudar quando Philip foi recebido como um filho na família do Sr. Athelny. Essa ‘família substituta’ fornece-lhe a sustentação emocional, e até financeira, de que ele precisou para navegar pelos mares tempestuosos de sua temporária servidão. A verdade é que ao final da narrativa Philip poderia dizer como o Augusto Meyer dos Sonetos Gêmeos: “Saudade! Mas saudade em que não choras senão cantando o próprio mal vivido.”

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