Não adianta ser experiente: é preciso saber o que fazer

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo…
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer,
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura…
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.
“O Guardador de Rebanhos”, de Alberto Caeiro

Você não precisa esperar a velhice chegar para que a experiência acumulada o transforme em uma pessoa melhor. Aliás, a chegada da velhice não garante que isso acontecerá.

É certo que você conhece jovens de dezesseis anos que têm uma visão de mundo e uma postura diante da realidade muito mais madura, por assim dizer, do que a de muitos senhores de cinquenta anos. Porque, evidentemente, os idiotas também envelhecem, e se tornam velhos idiotas.

O que eu quero dizer com isso? Quero dizer que é possível utilizar com mais proveito sua experiência cotidiana.

Eu tentarei, neste texto, elaborar as linhas de uma estratégia eficiente para você transformar sua experiência em virtude – especificamente, na virtude da prudência, que os gregos antigos chamavam de sophrosýne.

Veja. É lugar-comum na literatura de ficção: o personagem viaja a terras distantes com um objetivo determinado, mas só o alcança após vencer os mais variados desafios, ao retornar para o lugar de onde partira. É lá, na origem, que, de alguma forma, o bem desejado sempre esteve.

Ulisses ouvindo o canto das sereias.

Essa estrutura narrativa é consagrada porque contém pelo menos duas boas lições:

  • A lição de que é preciso ter experiência para enxergar as nuances da realidade e encontrar o que você deseja; e
  • E a de que a aquisição de experiência leva tempo e demanda certo distanciamento.

Abro, aqui, um pequeno parêntesis. Ao dizer isso que acabei de dizer, sei que lanço um problema sério, que foi evidenciado, por exemplo, na fábula de Hans Christian Andersen (A Nova Roupa do Imperador): os olhos da criança inocente costumam ver o que ninguém mais percebe – justamente porque ainda não foram castigados pelo acúmulo dos maus hábitos de percepção.

Caberia, então, a pergunta: ora, se a experiência é um pressuposto necessário para a melhor compreensão da realidade, como pode a criança – em algumas circunstâncias – perceber mais e melhor que um adulto?

Não pretendo, neste breve artigo, desenvolver essa questão específica. Mas tirarei dessa pergunta uma hipótese de trabalho: a experiência é uma faca de dois gumes, que pode tanto aperfeiçoar a percepção através da correta estruturação dos dados extraídos do mundo; como, por outro lado, consolidar vícios de percepção que, por razões que Freud pretendeu explicar, o indivíduo adotou em sua vida. Fecho o parêntesis.

A pergunta que tentarei responder aqui, então, é: como aproveitar melhor a experiência para alcançar uma instalação mais adequada na realidade?

Vejamos. Para inteligir adequadamente a realidade, parece-me necessário estar no pleno uso e gozo de suas faculdades mentais e, além disso, possuir certo tipo de saber, que é adquirido gradativamente. É por lhe faltar o primeiro pressuposto que a criança não intelige a realidade em toda a sua complexidade, ela que ainda não desenvolveu plenamente suas faculdades intelectivas (nota: apesar disso, a criança pode chegar a captar muito profundamente a parcela da realidade que está a seu alcance). Por sua vez, por carecer do segundo pressuposto, assim também parte dos idosos não chega a inteligir toda a complexidade do real.

Estamos trabalhando, pois, com três elementos: experiência, faculdades da alma e uma certa sabedoria.

Perdoem-me se pareço estar complicando a nossa conversa. Mas é só impressão, porque no final das contas a coisa é simples. Basta que você medite um pouco sobre o que acontece na sua própria vida. Veja se Aristóteles não tem razão: para ele, o acúmulo de sensações naturalmente se vai ordenando num emaranhado que a que se chama empeiría (εμπειρíα). Isso acontece graças à memória (μνήμε), que retém as imagens que nos chegam pelas sensações (cf. Xavier Zubiri, em Cinco Lições de Filosofia, p. 56).

O filósofo espanhol Xavier Zubiri.

Então, a experiência é, num resumo meio tosco, o acúmulo de sensações feito pela memória.

Mas isso já é conhecimento?

Em algum sentido, sim.

O próprio Zubiri nos diz: a experiência é um saber, mas é um saber do particular. Um curandeiro pode, por exemplo, ter sucesso com o tratamento de seus pacientes. Mas se ele não compreende as causas da cura e, além disso, não sabe transmitir seu saber, é certo que não domina a arte/técnica da medicina. Seu saber é rudimentar, é primário.

As outras cinco formas de saber são a tekhné, phrónesis, epistéme, nôus e sophía. São, como diz Zubiri, cinco modos de estar na verdade de algo. Interessa-nos, sobretudo, a phrónesis (prudência), que é um saber a maneira de agir na vida em seu conjunto total.

Ora, esse é o ponto: quem não quer dominar a arte de viver?

Independentemente da idade e independentemente do volume de experiências acumuladas, quem não quer saber, tanto quanto nos é possível, a razão e o sentido da vida humana, conhecer a melhor decisão a tomar, saber onde investir suas energias?

Todo mundo quer, não é?

Pois bem. O desenvolvimento dessa arte de viver é trabalho para toda a vida. E é um trabalho que, infelizmente, pode fracassar – como fracassou “a vida inteira que poderia ter sido e que não foi” do poema do Manuel Bandeira.

O poeta pernambucano Manuel Bandeira.

Por isso é importante conhecer alguns caminhos que podem ajudá-lo. Como é usual nos posts que escrevo aqui, a enumeração que faço não é exaustiva, mas exemplificativa.

Vejamos, então. Para aproveitar bem sua experiência pode ser interessante que você:

1) Compreenda o que é o ser humano e por que estamos aqui.

Como o objeto da prudência é um certo conhecimento do bem e do mal no âmbito da vida humana, você precisará meditar a respeito do ser humano.

Para colecionar imagens que podem fertilizar suas reflexões, sugiro que ouça a declamação que a atriz Sandra Corvelone fez para o Instituto Moreira Sales do poema Especulações em Torno da Palavra Homem, de Carlos Drummond de Andrade:

Em outro momento, podemos voltar mais detidamente a esse assunto. Por ora, deixo a sugestão de que procure se informar sobre os grandes temas da Filosofia Moral e das soluções que os mais variados pensadores lhe dedicaram. Se quer uma sugestão, entre tantas possíveis, fique com o História da Ética, do filósofo britânico Alasdair MacIntyre, do qual tenho uma tradução espanhola.

2) Não se feche à realidade.

Adotadas certas cautelas relacionadas à segurança pessoal e à urbanidade, é preciso entender a realidade como uma oportunidade sempre aberta para o aprendizado.

Nós já vimos que a experiência é o resultado do acúmulo de sensações ordenado pela memória. Logo, abrir-se a experiências humanamente saudáveis é a receita para alcançar a prudência.

No meu curso de Introdução à Filosofia, eu sugeri aos alunos uns poucos exercícios que podem ajudar a lidar com a incerteza (ou a confrontar os limites do que você julgar ser uma pessoa sensata).

Coloco-os aqui na expectativa de que eles podem indicar os contornos do quadrado dentro do qual vivemos.

Os exercícios que sugeri na segunda aula são os seguintes: i) ir para a faculdade ou para um encontro com amigos com um tênis/sapato diferente em cada pé; ii) ler em voz alta uma página de um livro escrito em uma língua que você ignora completamente; iii) conversar com um familiar/amigo numa língua que você inventará à medida em que fala (versão hard: fazer o mesmo com um estranho na rua). Sugestão: o exercício funcionará melhor se os fonemas articulados não puderem ser confundidos com as palavras em sua própria língua; iii) num dia de semana, almoçar em um bairro muito distante de sua casa/local de trabalho, escolhido aleatoriamente; iv) rezar mil ave-marias de uma só vez; v) dê 20% de seu salário ao primeiro mendigo que lhe abordar na rua; vi) abraçar dez pessoas desconhecidas; vii) se você é assíduo nas redes sociais (Facebook, Instagram, Twitter), ficar dois meses sem acessá-las; se você não frequenta redes sociais ou não é assíduo nelas, a sugestão é que você eleja uma delas e, depois que tiver um número razoável de contatos, faça uma postagem por dia, durante um mês, a respeito de assuntos ou de personagens que jamais despertaram seu interesse; viii) vá no Google Maps e encontre, aleatoriamente, uma cidade da África ou da Ásia; e pesquise algo a respeito dela. Se possível, descubra algo a respeito da sua história ou de alguma pessoa que tenha nascido lá; e conte para uma pessoa com quem você tem relativamente pouco contato, tentando gerar nela certo interesse pelo assunto; ix) se você morar em uma cidade grande ou média, e tiver pelo menos duas horas livres, tome um ônibus qualquer, ao acaso, aleatoriamente, e vá até o ponto final dele; x) pense alguma modificação legislativa que poderia beneficiar sua cidade ou seu estado; escreva um projeto de lei, tente agendar um horário com algum vereador ou deputado estadual e convença-o a apresentar seu projeto para discussão na câmara dos vereadores/assembleia legislativa. Em tempo: vale também um redigir um projeto de lei que pretenda revogar alguma lei já existente; xi) num dia de semana, acorde às 4h da manhã, tome um banho, coloque sua melhor roupa, dê uma volta no quarteirão e volte a dormir; xii) decore um poema de no mínimo cinquenta versos.

Esses exercícios também têm outra função, que é a de tirar você da zona de conforto e estimular a abertura para a realidade, com isso despertando você para aspectos da sua personalidade que costumam ficar adormecidos.

A experiência que você terá fazendo dois ou três desses exercícios (ou entendendo, em definitivo, que não consegue fazê-los) tem o potencial de aumentar sua experiência para horizontes que você não acessava.

Com isso eu não estou estimulando você a agir, em público, de modo despirocado ou insensato – mesmo porque eu acredito que o quadrado dentro do qual vivemos nos permite, com efeito, viver com relativa segurança. Minha intenção, ao lhe sugerir este exercícios, é que você enxergue os limites do quadrado e, se desejar, aumente um pouquinho seu horizonte de percepção. Eu não pretendo, jamais, que você passe para a agir fora do quadrado apenas pelo prazer de, supostamente, estar ganhando o mundo.

3) Tente desejar o bem para pessoas que lhe prejudicaram ou pelas quais você tem maus sentimentos – mas faça-o sinceramente.

Quando odiamos alguém nós excluímos de nosso horizonte amplas parcelas da realidade – sobretudo quando, além de odiar, afastamos, o odiado, daquele território mental em que colocamos as coisas que queremos compreender e amar.

Levando em conta que a pessoa que você odeia ou evita está associada, em sua mente, a dezenas ou centenas de circunstâncias com as quais você lida no dia a dia – ou que, eventualmente, até mesmo constituem sua vida –, é claro que ao expulsar essa pessoa do seu campo mental você também afasta (ou distorce) os aspectos da vida a que ela está associada para você.

4) Faça um planejamento de seu dia, de sua semana, de seu mês.

Ortega y Gasset dizia que o problema do homem é, sempre, saber a que se ater.

Há, aqui, um aparente problema. As mais variadas escolas filosóficas ensinam que, para conhecer um objeto, seria preciso não projetar nele seus desejos.

Essa concepção recebeu um duro golpe sobretudo pelos influxos vindos da teoria da relatividade de Einstein, que acabou sendo interpretada, no âmbito da cultura, como prova da impossibilidade de separação, no ato do conhecimento, entre sujeito e objeto.

Poderíamos, portanto, dizer que aquele que executa sobre o mundo seu planejamento não está propriamente conhecendo esse mesmo mundo, mas agindo sobre ele.

Porém, invocando, aqui também, o pensamento filosófico do século XX, é possível dizer que não há conhecimento da realidade sem intencionalidade. Todos temos a experiência de um certo entorpecimento de consciência quando, diante de uma certa situação, não sabemos o que fazer.

Isso quer dizer que uma maneira de se orientar no mundo é localizar-se nele como agente. Dito de outro modo: fazer planos é um modo muito interessante de se confrontar com o mundo. Quer você consiga executá-los, quer não, algo sempre acontece: você sai conhecendo melhor a realidade e a você próprio.

5) Faça frequentes exames de consciência.

É conhecida a frase que Sócrates disse em seu julgamento: Uma vida não meditada não merece ser vivida. O que poucos se dão conta é que ele não disse isso por simples amor ao debate ou à reflexão.

O que Sócrates, buscava, efetivamente, era ser uma pessoa melhor.

Cerca de oito séculos depois de Sócrates, Santo Agostinho demonstrou, na prática, de que modo o exame de consciência era um modo muito eficiente de conhecimento de si, mas não só: por meio de suas Confissões, ele exemplificou, numa dimensão pessoal que não havia entre os antigos gregos, que o autoconhecimento é pressuposto para o conhecimento da realidade. Em outras palavras, ele comprovou que quando nos conhecemos a nós mesmos nos tornamos mais inteligentes.

Santo Inácio de Loyola

Na tradição da Igreja, o exame de consciência é composto de uma série de perguntas que costumam seguir a ordem dos dez mandamentos. Com a prática, você vai incorporando, em sua vida, uma luz que ilumina os espaços de sua consciência. Quando se dá conta, você começa a surpreender em si ideias, pensamentos soltos, cogitações que antes passavam completamente despercebidos – e que você só captava quando já se haviam concretizado em ato.

O exame de consciência frequente também tem outro efeito muito poderoso: ele o ajuda a fechar ciclos.

Sabe aquela história, que surge entre o Natal e o Ano Novo, de passar a limpo o ano que está terminando? É o momento em que muita gente se arrepende de ter perdido tempo, de não ter colocado em prática o que havia planejado etc.

Pois é. Já pensou se você se avaliasse, com a mesma seriedade, todos os dias? Matematicamente, sua vida seria 365 vezes mais dinâmica; ou, em outras, palavras, você passaria a limpo sua vida todos os dias – e assimilaria, por assim dizer, em 24 horas, a experiência que antes você só assimilava em um ano.

Com isso, você pode ir ajustando, numa sintonia cada vez mais fina, sua conduta de acordo com sua experiência passada e com suas expectativas para o futuro.

Caso tenha alguma dúvida ou sugestão a respeito desse processo de assimilação da experiência em vista da virtude da prudência, não deixe de entrar em contato!

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