Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto
O poema Morte e Vida Severina, do poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto, é sem dúvida primo primeiro de Vidas Secas, de Graciliano Ramos — não só por sua temática, mas pela sensibilidade com que trata o sofrimento dos nordestinos retirantes que buscam vida nas cidades. A retirada é uma travessia entre o nada e a esperança de uma vida melhor. É o cruzar de um rio. Mas Severino pergunta:
Seu José, mestre carpina,
e quanto ponte não há?
quando os vazios da fome
não se tem com que cruzar?
Quando esses rios sem água
são grandes braços de mar?
A imagem da miséria, da fome, da seca e da morte como um vasto mar sem pontes acompanha-nos, os leitores, ao longo desse poema. Somos convidados, em cada vila por que passa Severino, a dedilhar uma conta a mais nesse rosário formado pelo Rio Capibaribe e pelas cidades e vilas estabelecidas nas suas margens — margens já secas e, portanto, incapazes de nos orientar rumo à terra prometida. O rio, seco; as vilas, vazias. Como prosseguir nesse caminho?
Ainda assim, Severino de Maria prossegue. Encontra uma senhora que à falta de outra opção abraçou o ofício de rezadora titular da região: Vou explicar rapidamente, / logo compreenderá: / como aqui a morte é tanta, / vivo de a morte ajudar.
No meio da estrada pedregosa, porém, uma nova vida se anuncia. De sua formosura / já venho dizer: / é um menino magro, / de muito peso não é, / mas tem o peso de homem, / de obra de ventre de mulher. A sina desse moleque não é diferente daquela de seus pais: aprenderá a engatinhar / por aí, com aratus, / aprenderá a caminhar / na lama, com goiamuns, / e a correr o ensinarão / os anfíbios caranguejos, / pelo que será anfíbio / como a gente daqui mesmo.
Mas é, apesar de tudo. belo. Belo porque é uma porta / abrindo-se em mais saídas. / Belo Porque tem do novo / a surpresa e a alegria. / Belo como a coisa nova / na prateleira até então vazia. / Como qualquer coisa nova / inaugurando o seu dia. / Ou como o caderno novo / quando a gente o principia. / E belo porque com o novo todo o velho contagia.
Se vocês me acompanham, devem ter visto meus breves comentários e o vídeo que postei sobre o livro As Brasas, de Sandor Márai. Lá como aqui, os personagens se depararam com determinadas questões que eles só foram capazes de responder com a vida mesma. Em As Brasas, Henrik disse a Konrad:
Às perguntas mais importantes sempre terminamos respondendo com nossa vida. O que dizemos nesse meio tempo não tem importância, nem os termos e argumentos com que nos defendemos. No final de tudo, é com os fatos de nossa vida que respondemos às indagações que o mundo nos faz com tanta insistência. E que são estas: Quem você é?… O que queria de verdade?… O que sabia de verdade?… A quem e a quê foi fiel ou infiel?… Com quem ou com quê se mostrou corajoso ou covarde?… São essas as perguntas capitais. E cada um responde como pode, com sinceridade ou mentindo; mas isso não tem muita importância. O que importa é que no final cada um responde com a própria vida.
Em Morte e Vida Severina, Severino de Maria pergunta a Seu José, mestre carpina: que diferença faria / se em vez de continuar / tomasse a melhor saída: / a de saltar, numa noite, / fora da ponte e da vida? A resposta, magnífica, de Seu José, depois do nascimento de seu filho, é a seguinte:
— Severino, retirante,
Deixe agora que lhe diga:
Eu não sei bem a resposta
Da pergunta que fazia,
Se não vale mais saltar
Fora da ponte e da vida
Nem conheço essa resposta,
Se quer mesmo que lhe diga
É difícil defender,
Só com palavras, a vida,
Ainda mais quando ela é
Esta que vê, Severina
Mas se responder não pude
À pergunta que fazia,
Ela, a vida, a respondeu
Com sua presença viva.E não há melhor resposta
Que o espetáculo da vida:
Vê-la desfiar seu fio,
Que também se chama vida,
Ver a fábrica que ela mesma,
Teimosamente, se fabrica,
Vê-la brotar como há pouco
Em nova vida explodida
Mesmo quando é assim pequena
A explosão, como a ocorrida
Como a de há pouco, franzina
Mesmo quando é a explosão
De uma vida severina.
É um belo poema, com uma linda concepção da vida, da morte e do sofrimento. João Cabral teve a magnífica capacidade de transformar o sangue, o suor e as lágrimas dos retirantes nordestinos em literatura — ou seja, em uma experiência que pode ser compartilhada. Melhor assim.
Seguem três indicações de vídeos a respeito da obra:
Apresentação que fiz do poema de João Cabral:
Fala inicial de Severino, por José Dumont:
Adaptação animada feita pelo cartunista Miguel Falcão:
https://www.youtube.com/watch?v=clKnAG2Ygyw
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