Memória, narrativa e Filosofia (Olavo de Carvalho)
Na Aula n. 219 do Curso Online de Filosofia, de 07.09.2013, o prof. Olavo de Carvalho falou belissimamente sobre a capacidade expressiva como pressuposto da atividade filosófica. Segue o trecho, não revisado pelo professor:
“(…) A pior maneira de se estudar filosofia é tomar certas questões gerais que você chama de ´problemas filosóficos´e colocá-las na cabeça do aluno. Por exemplo: Existe o mundo exterior? Podemos conhecer a ´coisa em si´? Assim você começará a partir de formulações já muito elaboradas e não da experiência originária. O problema filosófico apresentado tem de lhe mostrar suas credenciais. Primeiro ele tem de provar que ele é um problema de verdade, e não um erro de linguagem. Em segundo lugar, ele tem de provar que ele é importante, que ele é vital, e principalmente que ele é vital para você na sua situação existencial real. [Como estamos buscando] o verdadeiro ensino da filosofia, no começo eu insisti na importância de uma formação literária. Por quê? Porque o problema todo começa com a expressão das impressões. Se você não consegue dizer o que você está percebendo, o que você está sentindo, então muito menos você conseguirá elaborar aquilo filosoficamente. Isso quer dizer que um grande poder de expressão verbal — não na clave apelativa de Karl Bühler (no sentido da atuação social, da persuasão), mas na clave expressiva –, um grande poder de expressão é muito importante para o filósofo. Por quê? Porque se ele não consegue expressar suas impressões reais muito menos ele conseguirá trabalhá-las conceitualmente. Então isso quer dizer que em vez de trabalhar com as suas impressões reais ele vai trabalhar com conceitos já elaborados que ele recebeu da tradição filosófica, do vizinho, da mídia ou de qualquer lugar. Então a filosofia dele não terá raiz na experiência real. Então a expressão literária é o começo da atividade filosófica. Na verdade é o começo de tudo para todos. Quando você tem uma criança o que você lhe ensina? Você lhe ensinará trigonometria, história, antropologia? Não! Você vai ensinar-lhe a falar! Então isso é a primeira coisa, sempre! Por exemplo, se você vai ensinar aritmética. Trata-se de um processo de formalização que supõe que você já conhece diversas coisas e que você já é capaz de expressá-las. Se você não é capaz de dizer ‘banana’ você não pode somar o número de bananas. Isso quer dizer que a habilidade aritmética é posterior, mas a fala é algo elementar no ser humano.
A razão passou a se chamar razão em Roma, com a palavra ratio. Ratio quer dizer proporção (então enfatiza o lado aritmético da coisa). Por exemplo, é claro que a capacidade de se avaliar proporções é importantíssima. Porém, antes disso, na Grécia essa capacidade se chamava logos, ou seja, capacidade de falar. Quer dizer, se não existe a fala, se não tem a expressão, você não sabe com o que você está lidando. E mais, como a linguagem é um bem social, ela adquire uma autonomia em relação aos objetos. Para a pessoa que está aprendendo a falar, a linguagem é um objeto do mundo exterior também. E não é só um instrumento interior dele: ele a recebe como um dado exterior e ele terá de personalizá-la. Esse processo não é fácil. É daí que sai o que eu chamo de ‘trauma de emergência da razão’. O ser humano nasce com a capacidade racional, mas a apropriação dos meios de exercício da razão é uma coisa altamente problemática. E isso é tanto pior porque as dificuldades da vida que requerem às vezes a mais alta capacidade racional para ser elaborada já nos chegam desde o princípio, desde que nós somos pequenos, e eles têm sobre nós o mesmo impacto que teriam sobre um ser humano adulto e altamente preparado. Então, por exemplo, você é uma criança e seu pai de repente fica doente e morre. E está lá você com sua mãe, os dois na miséria sem saber o que fazer. Esse não é um problema para uma criança resolver! Uma criança não tem capacidade de elaborá-lo. No entanto, o problema já está lá totalmente presente em cima dela muitos anos antes que ela tenha sequer a condição de compreender o que aconteceu. Eu acho fantástico que esse problema do trauma da emergência da razão nunca tenha chamado a atenção de ninguém. Fala-se em ‘traumas sexuais’. Meu Deus! Você só pode ter um trauma sexual se você já tem o trauma da emergência da razão antes! Isso é muito mais básico! A presença do homem no mundo se define como a presença do animal racional (zoon logistikon) em um meio que exige dele o máximo da capacidade racional e só lhe dá essa capacidade aos pouquinhos. Esse drama é muito pior do que qualquer drama sexual ou vontade de poder (Adler) ou do que os arquétipos do inconsciente coletivo etc. Isso é a própria condição humana básica! Quando o sujeito nasce ele já está com problemas que só a razão pode resolver e ele não tem ainda o domínio suficiente da razão para resolver. Todos os sofrimentos humanos, sem exceção, vem disto! É isso, por assim dizer, o pecado original. Na Bíblia, Adão dá o nome aos animais. Então, Adão praticamente sabe tudo o que um ser humano precisa saber; já nasce sabendo; não nasce pequenininho, mas já é feito adulto. Portanto ele tem a posse da razão humana em toda a sua extensão. Mas a gente não é assim; a gente nasce pequenininho e burro… É claro que temos toda a capacidade racional que Adão tinha, porém nós temos de conquistá-la aos poucos. E nesse ínterim, enquanto você vai conquistando, os problemas vêm e já te atropelam.
Quando você vai a um psicanalista e faz análise, o que você está fazendo? Está voltando a certos dramas que você viveu e que não pôde articular racionalmente na época. E você vai articular racionalmente ex post factum, depois que o estrago todo já está feito; e vai tentar salvar alguma coisa. É uma vergonha que a psicologia do Século XX tenha enunciado tantas teorias e nunca tenha parado para pensar em uma coisa desta! Porque eu não sou psicólogo clínico é claro que eu não vou dar a essa teoria todo o alcance psicoterapêutico que ela poderia ter. Mas alguns de vocês são psicoterapeutas e podem desenvolver essa questão: a simples dificuldade que o ser humano tem de equacionar racionalmente os problemas e portanto obter um domínio técnico sobre a situação; às vezes quando ele chega a esse domínio técnico o problema já veio, já passou, já deixou sua marca e ele não pode fazer mais nada. O máximo que ele pode fazer, como dizia o Dr. Juan Alfredo César Müller, é reescrever a história do eu, para se adaptar tardiamente a uma situação já vivenciada e na qual ele já sofreu derrota.
Eu estou continuamente fazendo esse reexame; eu repenso a minha vida e vejo emoções que eu tive quando era criança e que de algum modo ainda estão presentes. Porém eu tenho que reequacioná-las à luz do que eu sei agora. Por exemplo, quando você vai contar a sua autobiografia verá que há muitos críticos que enfatizam a deformação: “Ah! O sujeito vai deformar a sua vida retroativamente!”. Isso é uma mentira! O sujeito que recorda a sua vida, e conta o acontecimento da sua infância tal como ele o vê agora não o está deformando! Isso porque aquele acontecimento não é uma coisa isolada no tempo, feita para ficar congelada eternamente do jeito que era, mas feita para ser transformada pela memória e pela razão posteriormente. Portanto, essa elaboração posterior que o indivíduo empreende faz parte virtualmente daquilo que aconteceu antes. É claro que pode haver deformação, pode haver mentira, pode haver falsificação, mas o simples fato de você estar elaborando agora não quer dizer que seja uma falsificação. É como disse Louis Lavelle: “a minha memória é o meu verdadeiro ser”. As coisas passaram e a memória ficou — e ela está presente aqui em mim. Então ela é de certo modo muito mais real do que aqueles acontecimentos que já passaram. Porque a minha memória eu a tenho simultaneamente; ela está toda presente.
Quem quer ser filósofo tem de ter presente, o tempo todo, esse jogo do passado e do presente, da experiência originária e da sua elaboração racional. É claro que isso, no conjunto, é uma confusão, mas não é uma confusão obscura; é um jogo de luzes, em que você está iluminando um aspecto e outro e outro e no qual nunca está totalmente perdido”.
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