Meditações peripatéticas
Como em turvas águas de enchente, eu vivi até o final da minha adolescência tardia na selva tenebrosa das pedagogias falidas, conduzidas por cegos e ‘animadas’ por uma plêiade de ideias feitas de palha. O Sol e a Lua da minha segunda infância, entre eclipses e estranhos desalinhamentos, já não ofereciam orientação suficiente: muito cedo os vi apontando para dois polos-norte. Mas a privação de alimento só fez aumentar a fome de sentido. Submergido entre destroços do presente, porém movido por uma curiosidade insaciável, passei alguns dos mais preciosos anos da minha vida tropeçando em livros de quarta categoria. Os companheiros de naufrágio — poucos, muito poucos — buscavam salvação em outras tábuas no vasto mar das perspectivas sem futuro. Só Deus sabe como me preservei; e como, depois de apanhar um pouco, fui tomando coragem para reconhecer, mea culpa, que as relações que eu mantinha comigo mesmo, com as pessoas e com a vida em geral eram marcadas por camadas muito bem-articuladas de fingimento (ainda hoje me vi atendendo a ecos de um passado que já acreditava bem enterrado).
Dividido, subdividido, mas quanto movimento em mim procura ordem! Ao longo desse caminho — que ainda não acabou de terminar — tive de confessar minha ignorância quando minha presunção e minha vaidade teimavam em sustentar minha máscara de rapaz instruído; minhas fraquezas quando meu senso de autossuficiência insistia em me manter de pé como um espantalho; minha maldade quando achava que meu arremedo de amor às pessoas me tornava uma pessoa generosa; enfim, minhas vergonhas quando minhas conquistas me faziam esquecer que deixado às minhas próprias paixões eu era autor de misérias tão insossas e tão desprezíveis que entediariam o mais interessado dos ouvintes.
O que perdi se multiplicou e uma pobreza feita de pérolas salvou o tempo, resgatou a noite. Até que, sem que eu saiba dizer bem em que dia, mês ou ano (esse fenômeno é do tipo que não se fixa no calendário), a máquina do mundo se entreabriu para quem dela já se esquivava. Sim, majestosa e circunspecta, me chamou para seu reino augusto. Uma névoa marcou e ainda marca esse encontro localizado entre o antes de tudo e o hoje das minhas angústias — angústias que são pouco a pouco resolvidas em novos nomes, nos encontros e nas despedidas, nas manhãs de um novo começo, nos finais de tarde em que volto para casa exausto de pesquisa.
Grandes são os desertos e tudo é deserto. No mar aberto de uma grande biblioteca, ouço o canto das sereias. Medito. Serei forte como Ulisses? Se abro o peito para agasalhar esse nexo primeiro e singular ou se baixo meus olhos, desdenhando colher a coisa oferta, é coisa por demais complexa para uma resposta pronta e sem poréns. De peito aberto tenho feito muitas filosofias em segredo que eu, provavelmente, não escreverei; de olhos baixos, temo que a risada dos céus seja forte demais para meus ouvidos.
Seja como for, entre o sono e o sonho, minhas obras completas já ocupam uma seção respeitável de minha biblioteca: tenho muitos livros apenas imaginados. Sou aficionado por índices — os índices dos meus livros não escritos. Se eles, os livros, verão a luz do Sol, eis aí um grande dilema que por si só daria um belíssimo índice. Antes de apresentá-los ao mundo, será preciso desenvolvê-los com a matéria ainda informe das minhas ideias em gestação (longa gestação) — ou será que o escrever se faz caminhando?
(Publicado no Diário do Rio Doce, em 30.06.2015)
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