Pecado e simbolismo no ‘Sangue Sábio’ de Flannery O’Connor’

O texto original, aqui por mim traduzido, foi escrito por Sam Jordison e publicado em 12.12.2012 em The Guardian: Reading Group.

É difícil acreditar que os leitores a princípio duvidaram que moralidade e redenção eram essenciais na obra-prima católica de O’Connor. Mas a própria autora era bem firme a esse respeito.

Quando a editora Signet publicou a primeira edição popular de Sangue Sábio, ela anunciou o livro como “Um romance experimental sobre pecado e redenção” – o que o torna uma escolha ideal para a nossa ‘Leitura em grupo” a respeito da fé.

Além disso, se dermos crédito a Flannery O’Connor, durante os primeiros anos após a publicação do livro parece ter havido alguma dúvida sobre se pecado e redenção eram realmente os temas do livro. Em uma carta escrita em 1954 (a Ben Griffith, como citado em uma aula, altamente recomendada, dada pelo Professor Amy Hungerford na Open Yale), a autora escreveu:

“… ele é, na concepção, inteiramente centrado na redenção. Poucos estão dispostos a encarar isso, e talvez isso seja difícil, porque Hazel Motes é um niilista admirável. Seu niilismo o conduz de volta à realidade de sua redenção que, no entanto, é justamente aquilo de que ele gostaria muito de se ter afastado.”

Décadas depois, com montanhas de artigos e livros escritos sobre o catolicismo de O’Connor, é difícil imaginar alguém que não veja o que está no coração do livro. (“Wise blood redemption O’Connor” acaba de me trazer um interessante número de 166,000 entradas no Google, por exemplo). De fato, eu considero difícil imaginar que tenha havido problemas de interpretação. Sim, há muito mais no livro. Sim, Motes é um niilista admirável (e muito engraçado). Mas, espera lá. Você não pode perder essa chance, pode?

Bem, agora que estamos falando de ‘ver’, por que não discutir um dos maiores e mais óbvios temas do livro? O verdadeiro nome de nosso admirável niilista nos leva a isso. ‘Motes’, é claro, nos remete a Mateus 7:3:

“E por que reparas tu no cisco que está no olho do teu irmão, e não vês a viga que está no teu olho? Ou como dirás a teu irmão, deixa-me tirar o cisco do teu olho, estando uma viga no teu? Hipócrita, tira primeiro a viga do teu olho, e então cuidarás em tirar o cisco do olho do teu irmão.”

E então, Hazel é com frequência abreviado para “Haze” — o nome ideal para um homem que tem muitos problemas em ver o que está diante de seus olhos, que acha isso até mesmo mais difícil do que encarar a dura verdade, e que olha para a Bíblia através de lentes distorcidas:

“A Bíblia foi o único livro que ele leu. Ele não a leu com frequência, mas quando o fazia usava os óculos de sua mãe. Eles cansavam tanto sua vista que em pouco tempo ele era obrigado a parar.”

Os olhos de Hazel, é seguro dizer, são uma grande parte desse livro. Não se trata apenas do que ele vê e do que ele não vê, mas onde eles estão focados. Sua jovem sedutora, Sabbath Lily (outro nome sugestivo), diz a seu pai: “Eu gosto dos olhos dele. Eles não parecem ver aquilo para o que estão olhando, mas continuam olhando.” Eles são tão concentrados em algo fora do mundo que ele raramente nota a maior parte do que está acontecendo em torno dele (especialmente quando se trata da pobre Sabbath — ou do mais infortunado ainda Enoch Emery). E esse algo, nós descobrimos ao final, é a redenção.

Motes pode querer estabelecer uma igreja onde “o surdo não escuta, o cego não vê, o coxo não anda, o mudo não fala, e os mortos continuam mortos’ — mas não é assim que as coisas acabam acontecendo. Quando ele corrói seus próprios olhos com soda cáustica, ele passa a enxergar com uma clareza que nunca teve. Ele finalmente compreende o que quer — e o que ele quer é fazer penitência e “seguir em frente” em direção ao Jesus que ele passara tanto tempo negando. E então, em retrospectiva, tudo o que havíamos lido sobre seus olhos (e todos os outros olhos mencionados no livro) passam a evocar o tema da redenção.

Há muito mais desse simbolismo. Há até mesmo, em um ponto, uma nuvem luminosa com uma barba que se parece com Deus e que, flutuando, distancia-se de Motes à medida em que ele toma um caminho de fuga de sua eventual redenção. O que não é tão absurdo como parece. Na carta que eu já mencionei, O’Connor chegou a dizer:

“Quando você começa a descrever o significado de um símbolo tal como o túnel, que se repete no livro, você imediatamente começa a limitá-lo, e o símbolo poderia continuar se aprofundando. Tudo pode ter um significado mais amplo…”

Ao registrar as imagens simbólicas aqui, eu provavelmente incidi no receio que autora tinha — e as limitei e as desmereci. Tirada desse registro e desse contexto, essa coisa de redenção parece tão sutil como a disposição de Hazel Motes de repetidamente atropelar seu rival e profeta com seu carro velho e excêntrico. Mas eu não torci muito o nariz para essa questão porque ela estava entremeada na prosa ritmada e sedutora de O’Connor. Pelo menos não (torci o nariz a isso) como artifício literário. Filosoficamente, eu não gostei muito disso.

Comentando em seu artigo introdutório mensal,  Tom Conoboy disse:

“Eu devo dizer que essa mostra de moralismo religioso reacionário parece a mais inusitada escolha para o Guardian. Eu suponho que é um pouco melhor que seu outro romance, O Céu é dos Violentos, no qual Tarwater encontra a redenção ao ser ignorado pelo Demônio, mas o destino do pobre e velho Hazel em Sangue Sábio é melhor apenas em parte. E assim como Enoch Emery, ele é um bode-expiatório anti-Nietzscheano ainda maior que o Juiz Holden no Meridiano de Sangue de McCarthy.”

Tom Conoboy trouxe uma questão. Qualquer coisa pode ser discutida aqui, e desafiar nossos limites é saudável e bom. Mas devo admitir que eu achei o Catolicismo algo problemático. No fim das contas, quando Hazel aparentemente encontrou a iluminação, ele pareceu a mim mais desorientado que antes. Torturar a si mesmo com arame farpado, palmilhar sob seus pés cascalho e vidro e sair de casa para morrer em uma vala não são atos de um homem que caminha na direção correta.

Ao dizer isso, eu estou mais uma vez na direção oposta à autora. Em sua nota, de 1962, à segunda edição do romance, O’Connor disse:

“Que a fé em Cristo seja para alguns questão de vida e morte tem sido uma pedra de tropeço para leitores que prefeririam pensá-la como algo sem consequências. Para eles, a integridade de Hazel Motes está na sua tentativa firme de se livrar da figura esfarrapada que se move de árvore em árvore no fundo de sua mente. Para a autora, a integridade de Hazel está em sua incapacidade de fazê-lo”.

“Que prefeririam pensá-la como algo sem consequências”. Isso dói! Atropelados por Flannery O’Connor! Pelo menos eu começo a entender algo da agonia de Hazel Motes… e pelo menos eu chego à parte do livro que se espera, tal como Jesus Cristo, ofereça a vida eterna: o uso sagaz que a autora fez do arame-farpado. Isso porque por mais que tudo neste livro esteja em torno da redenção, para mim o mais importante é que tudo isso é muito engraçado — e está maravilhosamente escrito. Por ter falado tanto desse simbolismo pesado e dos intervalos profundos da alma, eu acredito que tenha descaracterizado a obra. Perdi a chance de falar sobre momentos luminosos. Como esse:

“Começou a chuviscar e ele ligou os para-brisas, que fizeram barulho como dois bobos batendo palmas na igreja.”

E esse:

“Ela era feia. Seu cabelo era tão ralo que parecia molho de presunto escorrendo pelo seu crânio”.

E  esse:

“A fé é aquilo que alguém sabe ser verdade, quer acredite ou não”.

Mas então O’Connor me pegou de novo. “É um romance cômico”, ela escreveu naquele prefácio, “e, como tal, muito sério, porque todo romance cômico deve tratar de questões de vida e morte” — e para ela isso significa “crer em Cristo”. Eu não tenho nada mais a dizer. E você?

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