Cármides, de Platão (três observações)
No diálogo Cármides, Sócrates, recém-chegado de uma batalha, conversa com Crítias e o sobrinho deste, o belo Cármides, a respeito do que seja temperança. Embora este não seja um dos mais importantes dos diálogos de Platão, há nele pelo menos três circunstâncias dignas de nota:
i) Sócrates faz inusitadas, se bem que breves, análises psicológicas. O texto é um relato feito por Sócrates da curta conversa que teve com Crítias e Cármides. A diferença, aqui, em relação aos demais diálogos platônicos em que certa discussão é relatada por um terceiro é que se trata do próprio Sócrates a narrá-la. Porém, muito além de meramente relatar o diálogo colocando-se, como narrador, em posição de certa invisibilidade (como ocorre em outros diálogos platônicos em que verdadeiramente ‘esquecemos’ do narrador e acompanhamos atentos ao desenrolar da discussão), ocorre aqui algo com que o leitor frequente de Platão não está acostumado: em pelo menos duas oportunidades, Sócrates relata ao ouvinte suas impressões pessoais a respeito do comportamento de seus interlocutores em busca de aferir de que modo melhor conduziria a discussão a partir dali. Tive a impressão de que Platão, nesses dois trechos, explorou certa dimensão da atividade mental de Sócrates que, ao que parece, não vem à luz em nenhum outro diálogo. Faço menção às passagens 162c-162d e 169c-169d. Sugiro que vocês consultem o texto. Apenas para ilustrar, segue um trecho da última referência (a tradução que tenho é a de Carlos Alberto Nunes, da Editora UFPA):
(…) Crítias deixou-me a impressão de que ele, também, por me ver enleado, ficara contaminado da minha perplexidade. Como estava habituado a só receber elogios, sentia-se acanhado diante da assistência, e nem se decidia a confessar que era incapaz de discorrer sobre a questão para que eu o desafiara, nem dizia nada com clareza, cuidando apenas de esconder a sua confusão.
ii) a fascinação de Sócrates pela beleza de Cármides, que nos chega a ser verdadeiramente incompreensível. Por exemplo: a tal ponto Sócrates fica encantado com Cármides que relata:
(…) aquele [Cármides] me pareceu admirável, tanto de altura como de rosto, afigurando-se-me que todos os outros estavam enamorados dele, tal o enleamento e a confusão que se estabeleceu à sua chegada. Entre os seus acompanhantes contavam-se muitos apaixonados. Que isso acontecesse conosco, homens feitos, não fora de admirar. Mas prestei atenção aos moços e observei que nenhum desviava dele os olhos, nem mesmo os de menos idade: contemplavam-no como a uma estátua.
(…) Dirigindo-se para o nosso lado, Cármides sentou entre mim e Crítias. Nesse instante, amigos, fiquei atrapalhado e me vi abandonado da confiança habitual, com que contava para conversar naturalmente com ele. (…) Olhei para dentro das vestes de Cármides e me senti abrasado e fora de mim, tendo então compreendido quão sábio fora Cídias em matéria de amor, por haver aconselhado alguém, com referência a um belo jovem: ‘Cuidado deve ter a corça tímida; / do leão não se aproxime, para / presa dele não vir a ser. (…) Eu de mim, já me julgava nas garras de semelhante fera.
iii) por fim, o registro da necessidade de curar a alma antes de curar o corpo; e menção ao método de cura através da palavra (mais precisamente, de ‘belos argumentos’). É que Cármides se queixava de certa indisposição que o acompanhava há dois dias (a cabeça lhe pesava ao se levantar). Sócrates anuncia seu método de cura:
(…) assim como não é possível tentar a cura dos olhos sem a da cabeça, nem a da cabeça sem a do corpo, do mesmo modo não é possível tratar do corpo sem cuidar da alma, sendo essa a causa de desafiarem muitas doenças o tratamento dos médicos helenos, por desconhecerem estes o conjunto que importa ser tratado, pois não pode ir bem a parte, quando vai mal o todo. É da alma, declarou, que saem todos os males e todos os bens do corpo e do homem em geral, influindo ela sobre o corpo como a cabeça sobre os olhos. É aquela, por conseguinte, que, antes de tudo, precisamos tratar com muito carinho, se quisermos que a cabeça e todo o corpo fiquem em bom estado. As almas, meu caro, continuou, são tratadas com certas fórmulas de magia; essas fórmulas são os belos argumentos. Tais argumentos geram na alma a sofrosine ou temperança, e, uma vez presente a temperança, é muito fácil promover a saúde da cabeça e de todo o corpo. (…) Nisto, prosseguiu, consiste o erro dos homens de agora: imaginar que podem ser médicos de uma só parte, isoladamente considerada, separando da saúde a temperança. (…) Por isso, se te dispuseres, de acordo com as instruções do estrangeiro, a franquear-me tua alma, para que primeiro eu a submeta ao encantamento do Trácio, depois te aplicarei o remédio da cabeça. Caso contrário, meu caro Cármides, não sei o que possa fazer contigo.
Assim como em tantos outros diálogos platônicos, este termina sem que os interlocutores tenham chegado propriamente a uma conclusão a respeito do objeto da discussão. Apesar disso, os caminhos percorridos por Sócrates em sua pesquisa são muito interessantes e valem a leitura e a reflexão.
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