As famílias condenadas à solidão não terão uma segunda oportunidade sobre a terra: ‘Crônica da Casa Assassinada’, de Lúcio Cardoso
Crônica da Casa Assassinada (1959), de Lúcio Cardoso, apresenta-nos uma família mineira em franco processo de decadência arrastando-se em algum ponto da primeira metade do século XX. Deixados à sua própria sorte, os irmãos Meneses certamente terminariam o serviço de autodestruição sem maiores problemas. Um auxílio, porém, acelerou todo o processo: é que quando os homens se empenham em se matar o diabo costuma dar uma mãozinha.
As 534 páginas desse magnífico romance de muitas vozes são a crônica de uma morte anunciada — morte dessa família rancorosa e ressentida que há muito já cheira mal. Desgraçadamente a Marta e a Maria desses lazarentos não cuidaram de mandar chamar por socorro: estavam tomadas pela fixação do ódio diuturno e persistente que a tudo corrói.
Os irmãos Meneses, seus empregados, todos enfim, já surgem como que mortos logo nas primeiras páginas. Com a possível exceção da Nina dos primeiros dias, da Nina de saias alegres, todos ali na chácara estão irrevogavelmente mortos, dormindo, dormindo profundamente.
Para onde quer que se olhe há dor, frieza, raiva e inveja. Há, porém, Nina, a recém-chegada, e há Alberto, o jovem jardineiro. Essas flores, porém, não resistem ao ambiente degradado e sem vida. Morrem por falta de ar. É que tudo morre na Chácara dos Meneses. Só o que vive é um profundo rancor de todos por todos e por tudo. Um rancor sustentado por um orgulho do brasão familiar. Em determinado momento da narrativa, Valdo registra para conhecimento de Nina: “Apesar de tudo, resta louvar o espírito da família Meneses, esse velho espírito que é nosso único ânimo e sustentáculo: este ainda é o mesmo, integral como um alicerce de ferro erguido entre a alvenaria que cede. Você nos encontrará imutáveis em nossos postos, e a Chácara instalada, a esse respeito, na sua latitude habitual. (…) Somos assim, por circunstância e por fatalidade, mais Meneses do que nunca.”
Apesar de tudo, o livro não nos deprime — pelo menos a mim não me deprimiu. Pelo contrário, é capaz de iluminar os porões onde guardamos nossos orgulhos vãos, onde cultivamos, já um tanto empoeirados, os nossos retratos de família que já não nos dizem muito, mas que nos cobram sua parcela de merecimento por nossa existência. E é sempre bom jogar um pouco de luz e ar fresco nesses porões.
A edição que tenho em casa é a da Editora Record, capa dura, 534 páginas, da coleção “Mestres da Literatura Brasileira e Portuguesa”; curiosamente impressa na Espanha, provavelmente em 1998. É possível encontrar também uma edição de 1999, da Editora Civilização Brasileira, comemorativa dos quarenta anos da primeira publicação.
Se você mantiver um ritmo de cem minutos de leitura diária, o livro pode ser vencido em doze dias.
Lúcio Cardoso é mineiro. E é de Minas que ele fala em seu romance; é Minas que ele busca e é de Minas que ele foge: “Minas, esse espinho que não consigo arrancar do meu coração – fui menino em Minas, cursei Minas e os seus colégios, vi nascer gente e nome em Minas, na época em que as coisas contam. O que amo em Minas é a sua força bruta, seu poder de legenda, de terras lavradas pela aventura que, sem me destruir, incessantemente me alimenta. O que amo em Minas são os pedaços que me faltam, e que não podendo ser recuperados, ardem no seu vazio, à espera de que eu me faça inteiro – coisa que só a morte fará possível” (Diário Completo, p. 293). Nascido em Curvelo, MG, em 1913, logo foi levado a morar em Belo Horizonte, onde passou sua infância; em 1923, vai para o Rio, para onde retorna em 1929 depois de cinco anos antes ter ido voltado a morar em Belo Horizonte. Leitor voraz, aos vinte anos já tinha diversos livros escritos e esboçados. Faleceu em 1968. Foi também poeta, dramaturgo e pintor.
Crônica da Casa Assassinada é um livro que divide a crítica. De um lado há os apaixonados; de outro os que deploram, por exemplo, a uniformidade estilística das vozes dos personagens. Há quem diga que a Crônica sequer é o melhor livro de Lúcio Cardoso. Minha opinião suspeitíssima, pouco valiosa e sujeita a mudanças à medida em que meu horizonte de leituras vai se expandindo é a de que quando eu for desta vida para uma muito melhor a Crônica estará na minha lista das dez melhores obras da literatura brasileira. A falta de concorrentes viáveis, pelo menos nos últimos trinta anos, indica que essa pontuação, se bem que um tanto precária, tende a se manter.
Lúcio Cardoso, segundo se diz, reconheceu que para escrever a Crônica precisou odiar muito Minas Gerais. É o próprio autor, em depoimento a Fausto Cunha, quem disse que: “Meu movimento de luta, aquilo que viso destruir e incendiar pela visão de uma paisagem apocalíptica e sem remissão é Minas Gerais. Meu inimigo é Minas Gerais.” As Minas Gerais de sua infância e de sua imaginação, diríamos nós. As Minas que provavelmente o oprimiram; as Minas das montanhas que não nos deixam ver o mar. Mas para entender Minas é preciso subir em suas montanhas. Na Crônica, porém, tudo o que Lúcio fez foi descer aos infernos, de onde as montanhas do Purgatório ficam mais altas e opressivas. É medonha a imagem que nos trouxe de lá.
Os principais personagens do livro são os seguintes: No ‘núcleo duro’ da antiga Fazenda Santa Eulália, então Chácara dos Meneses, estão: Valdo Meneses, marido de Nina, um personagem anódino e indeciso; Demétrio Meneses, irmão mais velho, casado com Ana, perturba-se com a chegada de Nina; Timóteo Meneses, irmão homossexual e excêntrico que se refugiou dentro de um quarto da fazenda; de onde planeja a destruição da família; Ana, esposa de Demétrio, enlutada com a vida, logo se vê tomada de inveja com a chegada de Nina; Betty, é a empregada doméstica, encarregada de preencher os espaços da casa com a ordem, com os recados e com as fofocas que administra entre o quarto de Timóteo e o resto da casa; Alberto, o jardineiro, agregado da família, pivô de um ou mais casos amorosos; Velha Anastácia, a cozinheira. A esses seres em decomposição junta-se Nina, mulher que foi criada no Rio de Janeiro, e que com a morte do pai e sem muito ânimo para juntar as trouxas com o Coronel casa-se com Valdo Meneses na esperança de que em Minas, no interior de Minas, viveria dias de glamour e felicidade; André, filho de Nina e Valdo, que vem morar na fazenda quando já era adolescente; Padre Justino, confessor de Ana e, de resto, antigo conhecido da família — foi também o confessor da matriarca; o Farmacêutico, a quem Demétrio procura quando está necessitado de uma ‘ajuda’; Dr. Vilaça, o médico, que mais ou menos próximo nos momentos de necessidade assiste ao desenrolar de parte dos fatos; o Coronel Amadeu Gonçalves, amigo do pai de Nina, que nutria pretensões de tê-la como esposa.
As primeiras cinquenta páginas desta Crônica deixam-nos uma forte impressão — a impressão de um retrato de família já um tanto empoeirado, uma família corrompida por paixões sem amanhãs e presa na moldura de um retrato repleto de abismos indecifráveis. Mas embora se note certo movimento no semicírculo de cadeiras em que se sentam os personagens, a verdade é que ninguém sabe a malícia das coisas quando a matéria se aborrece… E como se aborrecem os personagens dessa trama!
A personagem principal dessa magnífica narrativa de mil faces é Nina, até esse ponto uma jovem senhora que, recém-casada com o senhor Valdo Meneses, deixa o Rio de Janeiro e se muda para uma chácara no Sul de Minas. Lá assume uma nova vida que já no primeiro dia lhe promete dias e noites inteiras de tédio e de armadilhas.
Na chácara mineira residem seu marido Valdo, seu cunhado Demétrio, sua concunhada Ana, o excêntrico Timóteo e os criados: Betty, a governanta, de quem Nina se aproximou; a velha Anastácia (que gerencia as ‘pretas da cozinha’), Pedro e jardineiro Alberto.
O centro das primeiras cinquenta páginas é a chegada de Nina na chácara, onde antigamente funcionou a próspera Fazenda Santa Eulália. Recém-casada, demorou-se alguns dias no Rio de Janeiro antes de assumir sua nova vida — o que irritou deveras seu novo marido. Uma inocente discussão sobre a necessidade de uma reforma na casa, logo na primeira refeição em família, deixa transparecer a Nina que ela provavelmente caiu em um engodo: na verdade, Valdo Meneses não é o ‘homem rico’ com quem se casara, mas sim membro de uma família decadente que deve até as cuecas.
A chegada de Nina naquela família despertou diferentes reações. Valdo, um pouco ciumento e apreensivo, acredita ter conseguido conquistar a bela mulher (necessitará, a partir de agora, fazê-la se conformar à péssima situação financeira de sua nova família). Demétrio, seu cunhado, se encanta com a beleza de Nina. Ana, sua concunhada, por sua vez, lhe é hostil à primeira vista. O desinteresse é mútuo. Ana representa para ela, conforme o próprio Demétrio lhe deixará claro em breve, a imagem daquilo em que ela deverá se transformar, conformada, naquela chácara: uma mulher frustrada com seu tedioso casamento, pálida, de cabeça baixa e de vestidos pretos desbotados. Porém Nina é jovem, cheia de vitalidade. Casou-se com um ‘homem rico’. E não o encontrando realmente naquela chácara, já começa a se queixar com o homem que lhe enganara. Ah, Valdo!
O excêntrico Timóteo, meio enlouquecido, meio travestido de mulher, dorme em um quarto isolado, tolerado pela gerência. Veste as roupas da falecida mãe, tão extravagante quanto ele próprio tenta ser. Foi encostado pelo resto da família. Diz ter ‘encarnado’ o espírito de Maria Sinhá, uma tia de sua mãe, amazona que se vestia de homem, violentava escravos e andava pelas noites escuras fumando com uma capa sobre os ombros. Timóteo aguarda ansioso a chegada de Nina, com quem necessita falar um assunto da mais extrema importância.
Também o farmacêutico da mítica cidade de Vila Velha contribui com sua narrativa: certa vez lhe procurou o senhor Demétrio, queixando-se de que na chácara ouviam todos um certo barulho de um lobo. Uma conversa muito mole, convenhamos. Ele pede ajuda ao farmacêutico; e resultado: sai de lá com um revólver, que levou a troco de três caminhões de tijolo.
O que quererá Demétrio fazer com uma arma de fogo? Ainda não sabemos. Sabemos, sim, que ele é orgulhoso de suas raízes mineiras e da tradição representada pela antiga Fazenda Dona Eulália, onde moram. Mas tem os pés no chão e sabe que os Meneses já não são o que sempre foram. Tem consciência da decadência. Ainda não sabemos o que a esse respeito pensa Valdo. Sabe-se, tão-somente, que ele quer convencer sua mulher de que seu irmão Demétrio exagera ao falar da crise financeira da família. Fique tranquila, Nina, não será necessário utilizar seu dinheiro para pagar as contas. Em conversa com Betty, Nina percebe que a chácara é decadente, mas que ao longe os pastos da antiga Fazenda Santa Eulália indicam que ali já houve tempos bons de uma riqueza aristocrática. Que não diriam eles, esses Meneses antigos, se um dia eu tivesse um herdeiro para isto?
O herdeiro que surgirá desse casamento mal-iniciado é André, o primeiro narrador, aquele de quem ouvimos as primeiras palavras da narrativa, no velório de Nina sua mãe. É através dele que sabemos, já na quinta página, de sua relação incestuosa com Nina, de sua fria relação com Valdo seu pai. Através de um excerto de seu diário tomamos contato com uma Nina já transformada pela amargura e por um certo grau de loucura e de desgosto. A ‘Primeira carta de Nina a Valdo Meneses’ nos apresenta secamente o fato: a separação entre ambos, o pedido de pensão alimentícia e as queixas em relação às injúrias que diz ter sofrido. Compreendemos que seu ela acusa seu cunhado Demétrio de tê-la assediado e ele, no passado, a acusou de uma certa infâmia; descobrimos que por isso Valdo a abandonou ou a expulsou de casa, que ela recebe visitas de um amigo de seu pai, o Coronel Amadeu Gonçalves, homem mais velho que a corteja com agrados financeiros de que ela não vê a hora de se desvencilhar.
Certamente ainda haverá muito sangue, suor e lágrimas em cada uma das outras quinhentas páginas dessa interessantíssima narrativa.
Sim, evidentemente, houve isso e um tanto de outras coisas mais interessantes. Toda a narrativa tem dois centros de irradiação: de um lado, o interesse, em alguns casos a fascinação, de todos por Nina; de outro, os hábitos, os costumes, as manias e o ódio mútuo que constituem o que se convencionou chamar, ainda, de ‘Família Meneses’. Entre esses dois centros está Valdo, com um pé cá e outro lá — o que é uma outra forma de dizer: com os pés em lugar nenhum. Esse ‘ser morno’ está para ser vomitado por todos em cada uma das páginas e explica bem o trágico desenrolar dos fatos. Valdo Meneses é o guarda penitenciário que assiste sonso, de olhos mansos, aos amores velados, às torturas e às batalhas intestinas que começam a acontecer, com a chegada Nina, entre todos os condenados. É uma peça essencial da narrativa, mas não por sua presença, não por seus atos, mas exatamente por aquilo que ele não fez, que ele deixou de fazer. E o que ele deixou de fazer? Valdo Meneses deixou de ser ele mesmo: um ser que deve agir, dizer ‘sim’ e dizer ‘não’. Sim, pois Valdo não diz nada. Valdo se omite. E sobre seu cadáver insepulto todos dançarão um samba bravo e violento. Violento até a morte.
Prossigamos. Em determinado ponto da estória, o médico que atendia à Chácara, Dr. Vilaça, é chamado para atender a uma urgência. Valdo Meneses se ferira à bala quando limpava sua arma. O médico estranha o ‘clima’ da casa e, em conversa com Demétrio, não obtém maiores informações sobre o acidente. Curioso como só ele, já na saída se encontra com Nina em pé de viagem, com as malas prontas. Ela lhe confidencia pequenos detalhes da trama, mas todo o acontecimento fica ainda em estado de penumbra. Em carta a Nina, o próprio Valdo relata sua malograda tentativa de suicídio, premido pelos sinais de traição de sua esposa. Curiosamente, a arma que Nina joga no jardim é a mesma que o jardineiro usa para tirar-lhe a própria vida. Tudo indica que Demétrio premeditara o suicídio do irmão, comprando a arma e a colocando à vista de todos na casa para o caso de necessidade. O cunhado disseminava a tese de que Nina foi para o Pavilhão com Valdo com a intenção de poder melhor se dedicar às suas escapadas.
Em certo ponto de sua vida de casados, Valdo e Nina decidem alcançar refúgio no Pavilhão, casa relativamente isolada do resto da família. A medida, que buscava garantir um pouco de ar fresco à vida do casal, termina por aproximar Nina de Alberto, o jardineiro. Um fato desencadeia uma grande mudança: Demétrio surpreende Alberto na porta do Pavilhão ajoelhado diante de Nina, beijando-lhe as mãos. O relato é suficiente para desencadear a separação do casal. Sentindo-se humilhada com a injúria, Nina deixa a chácara e retorna ao Rio de Janeiro, já grávida.
Em cartas a Valdo, Nina diz que abandonou o filho no hospital. Veja só se iria trazer comigo um Meneses, foi a resposta que deu a Ana quando ela, a pedido de Valdo, foi buscar o rebento. Exilada em sua própria cidade, Nina cogita, em suas cartas, retornar à Chácara, dizendo-se espoliada no que era o seu direito. Em resposta, Valdo registra que está disposto a aceitá-la de volta, quinze anos depois. Mas que ela não alimentasse esperanças de ter de volta o mesmo amor dos primeiros tempos do casamento. O retorno de Nina, se viesse a se consumar, seria aceito em nome da dignidade dos Meneses. “Apesar de tudo, resta louvar o espírito da família Meneses, esse velho espírito que é nosso único ânimo e sustentáculo”. Como quem diz ‘acautele-se’, registra: “Somos assim, por circunstância e por fatalidade, mais Meneses do que nunca”.
A história toda se passa em Vila Velha, uma cidade fictícia próxima de Mercês, Queimados e Espera Feliz. Os Meneses foram e continuavam a ser, de algum modo, imprescindíveis à vida social local, embora já não sejam simpáticos como outrora. A vida social lá gira em torno do Barão, descendente dos Braganças de Portugal, e das festinhas que davam em sua casa. Os Meneses não compareciam. Demétrio, especialmente ele, aguardava uma prometida visita do Barão à sua fazenda hoje já decadente; e se irrita quando Timóteo, em tom de provocação, diz-lhe que essa visita à casa decadente jamais ocorreria. Foi inclusive pensando em passar uma bela figura perante o Barão que Demétrio foi preparando esposa Ana desde que ela era ainda uma menina. Os pais da moça se orgulhavam de cultivar em casa uma ‘futura Meneses’ e dedicavam-lhe uma educação esmerada e repleta de formalismos cheios de um significado aristocrático. Valdo Meneses, por sua vez, era um rapaz bonito, se bem que discreto, que passava seu charme em metade das mulheres locais. Um grande partido, desejado por muitas moças, até que a notícia de seu enlace com uma belíssima carioca transformou a disputa em uma intensa curiosidade. Todos queriam conhecer a dona daquele coração tão desejado pelo mulherio local.
Como Valdo e Nina se conheceram? Em visita a Rio de Janeiro, Valdo por acaso assiste a uma discussão de Nina e seu pai, um militar aposentado por invalidez. Aproxima-se da moça e descobre que ela, filha de uma atriz italiana que voltou para a Europa, saía com o Coronel Amadeu Gonçalves, amigo de seu pai que lhe cortejava aparentemente sem sucesso. Por fim Valdo a conquista. Com a morte do pai, Nina se casa e se muda para Vila Velha.
Ana, em carta a Padre Justino (aliás, antigo confessor da mãe de Demétrio, Valdo e Timóteo), confessa que invejava Nina desde o primeiro momento, por sua beleza, por sua vivacidade; que nunca amou seu marido Demétrio; e que, por um misto das duas coisas, caiu nos braços do Demônio e passou a fiscalizar os passos de Nina por toda a chácara — o que lhe permitiu, em dado momento, assistir a uma cena inusitada: Nina, deslumbrantemente vestida, sai ao encontro do jardineiro Alberto e, em um ato de cólera, dá-lhe um tapa no rosto.
Uma estranha relação triangular acaba se formando na Chácara com a chegada de Nina: Timóteo se interessa pela figura da cunhada e com ela passa a ter animados colóquios, acompanhados e garantidos por Betty. Como Valdo imagina, Timóteo tem todo o interesse de manchar o nome dos Meneses, de destruir a família. Nina, que não se afinou com todo o ambiente em torno daquela família decadente, era a parceira ideal que ele, em segredo, aos poucos cativava.
Receio que com a narrativa das primeiras cem páginas — ainda restam 450! — eu esteja tentando, em vão, usurpar o talento criativo do escritor. Por isso, paro por aqui. Se depois dessa pequena amostra você não se interessou pela leitura, tenho fortes razões para suspeitar que jamais se interessará por livro algum.
Muita, muitíssima água ainda irá passar pelas carregadas nuvens desses céus sombrios.
Alguns pontos da narrativa que me ocorrem:
- Nina, curiosa, se interessa por ver o retrato de Maria Sinhá, a louca andarilha da família, com fama de espiritada. Anastácia a conheceu; e é ela quem guarda a relíquia no porão, perto do quarto da chefe das pretas. Está empoeirado. A antiga tia de Dona Malvina é uma espécie de guardiã, de fiscal dos costumes. Não é à-toa que a escondem no fundo de um porão escuro. O contato de Nina com essa figura é o encontro de dois universos que se tocam. Afinam-se? Repelem-se? A impressão que tive é a de que não se compreendem.
- O jardineiro é encontrado morto. Chamado, o médico diz que só fará o atestado quando comunicarem às autoridades. Demétrio, abatido, diz que será a primeira vez que a polícia entrará na chácara. A ousadia do médico é sinal de que os Meneses já não tinham o prestígio de antes.
- Ana amava o jardineiro de vinte anos, o português Alberto, trazido ainda criança para a chácara por Maria Sinhá. Apesar disso, esperava há dias que ele se matasse. Demétrio, suspeitando de tudo, manda, em vão, que Alberto se mande da chácara.
- Ana beija Alberto em seu leito de morte e se passa por Nina para consolá-lo. Cenas fortes, não recomendadas para menores de 35 anos. O padre Justino é chamado ao porão onde jazia Alberto. Ana pede a ele um milagre, dizendo-lhe de sua ‘fama de santo’. O padre desconversa. Ela está aparentemente ‘possuída’.
- Após longa temporada no Rio de Janeiro, Nina retorna à chácara, melancólica. Lá se encontra com André, seu filho, um jovem de dezesseis anos. O corpo de sua mãe, próximo, lhe chama a atenção. Mexe consigo.
- Timóteo confidencia a Nina que com seu retorno poderão retomar o plano de destruir os Meneses, os quais se fortaleceram com sua ausência. Nina parece ser a semente de destruição da família, a faísca que dá início a uma pequena chama — pequena, mas perene — que aos poucos destrói a todos.
- André diz a Betty: Nina fala a mim como quem fala a outra pessoa. Magnífica percepção, de grande significado!
- Valdo começa a perceber mudanças em seu filho com a chegada de Nina. Mas não sabe o que fazer. Alías, Valdo nunca sabe o que fazer. Conversa com o padre, conversa com Betty. É a ‘irradiação pessoal’ de Nina que causa toda a confusão que se acrescenta à confusão própria da família. Betty começa a sentir a ‘má-presença’ de Nina.
- Ana vive um inferno pessoal, um ódio misturado com frustração e tédio. Escutar às portas: essa é a sua única ocupação, há muito tempo. Quer a morte de Nina e deseja protagonizá-la. Aponta-lhe o revólver, mas desiste.
- A indecisão do Coronel e a de Valdo parece contribuir para o ‘fracasso’ de Nina.
- Como um amante, André busca Nina pelos lugares. Encontra-a. Interroga-a, adverte-a, cobra explicações.
- Demétrio toca “Sobre as ondas” ao piano. Ana reza o Pai Nosso, pedindo que Deus castigue Nina por suas atitudes. Nina então chama André para dançar, que, tímido, acaba aceitando. Demétrio interrompe a música e sai bruscamente, deixando na sala um contraste entre doença e alegria.
- Nina está muito doente, nas últimas. André consegue penetrar no quarto. E tem relação com sua mãe já moribunda. Cena forte, não recomendada para menores de 35 anos. Ana e Demétrio, na sala, começam a sentir um cheiro forte, ruim, que vem do quarto de Nina doente. É Nina que em seu leito de morte já se decompunha a olhos vistos. Vendo a roupa ensanguentada, Ana acredita na Providência Divina, e crê que ele está punindo quem violou seus preceitos.
- Quando a sala já estava mais vazia, Valdo vê entrar um rapaz estrangeiro, novo, que ele não reconhece, mas que lhe parece vagamente familiar. É André, seu filho, que ele então percebe nunca o ter contemplado de verdade.
O livro termina com uma revelação mais ou menos imprevisível. O detalhe revelado muda um pouco, retroativamente, as tons e as cores de determinadas cenas, mas o quebra-cabeças de toda a narrativa continua com a mesma figura. É deveras estranha, nos Meneses, essa ideia de família viajando através da carne. Há em toda a história da família um tanto de mistério — sempre o inevitável mistério que nos afasta de nossos antepassados mais distantes ao mesmo tempo em que, por ser da ordem do indizível, reforça os laços da carne — uma carne cega, bruta, insaciável.
A desolação toma conta das últimas páginas do livro. Desolados, assistimos ao conturbado e triste velório de Nina. Mas a tristeza que toma conta da narrativa não é a que frequenta as famílias enlutadas. Não é só essa, pelo menos. É a tristeza de uma desorientação profunda que toma de assalto todos os personagens. Se cada família infeliz é infeliz à sua própria maneira, é preciso convir: que maneira mais horrenda, essa, de buscar a infelicidade! Eis um quadro dantesco, pintado com mãos de artista por Lúcio Cardoso: a casa devassada pela massa curiosa dos vizinhos, o barão finalmente por ali, num canto, o cadáver fétido sobre a mesa, as roupas da falecida derramadas sobre o chão e dois irmãos que se atracam na frente de todos — não para um abraço de consolação, mas para dar violenta vazão à raiva guardada na garganta há muitas décadas.
Ao fim e ao cabo, o desfecho do livro, trágico como cada uma de suas linhas, evoca a última frase de Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez (lançado oito anos depois): “as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra”. Os Meneses não terão uma segunda oportunidade. André, a promessa de continuidade, não estava verdadeiramente enraizado na carne dos Meneses. Nem na carne e nem no Espírito. Era — é o que descobrimos — o resultado do estranho e surdo encontro, num canto tenso daquela chácara amaldiçoada, entre a mais murcha das flores e a mais breve das estrelas cadentes.
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