As duas pontas da vida
Quem lê o romance mais consagrado de Machado de Assis conhece em estado puro o maior enigma da literatura brasileira: será que Capitu teve um caso com Escobar? Provavelmente nem mesmo o escritor sabia ao certo. Traiu ou não traiu? O caso é que esse drama conjugal nunca me interessou muito. Imagino que Dom Casmurro também tinha coisa mais importante com que se preocupar: a eventual infidelidade de Capitu era apenas um pequeno detalhe no panorama maior do convívio com essa personalidade tão ambígua e tão dominadora.
O encontro de um pré-adolescente mimado com essa personalidade forte o atordoou muito — a ponto de lhe tirar o chão. Por isso, vejam, Dom Casmurro traiu-se a si próprio. Eis aí a questão central — e a razão pela qual o protagonista escreveu suas memórias. Esse, sim, é o aspecto do livro de Machado de Assis que mais me intriga: logo no segundo capítulo, ao justificar a narrativa que começara a empreender, Dom Casmurro evidenciou que desejava, com a história, “atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência.” Segundo disse, “não consegui recompor o que foi nem o que fui. (…) Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo”.
Que confissão! Cabe aqui a pergunta: como é que uma pessoa pode descobrir que em sua vida “falta ela mesma”? No caso de Dom Casmurro, essa descoberta veio do contraste entre si e Bentinho: um não se reconhecia no outro. Contar a sua própria história foi a melhor maneira que ele encontrou de ajustar as contas consigo mesmo. Em Bentinho, o jovem que agia (ou se deixava agir) e o centro decisório (sua inteligência mesma) estavam desajustados. Vejam que Bentinho já estava de alguma forma, desde cedo, vinculado a Capitu, mas só “descobriu” isso quando ouviu, detrás da porta, uma conversa entre José Dias e sua própria mãe. Faltou-lhe, antes, sensibilidade e presença de espírito suficiente para apossar-se desse sentimento. Quando a informação chegou ao cérebro, ele já estava dominado. Bentinho jamais decidiu unir-se a Capitu; e, pior, jamais compreendeu a dimensão dessa união. Os olhos de ressaca o hipnotizaram. Se você é jovem, que lhe sirva esse instrutivo exemplo do que são capazes uns tais olhos de cigana oblíqua e dissimulada. Resultado: o homem se perdeu para nunca mais se encontrar — se bem que o exercício da literatura (o contar a própria vida) o ajudou a esclarecer um pouco as coisas.
O impulso que Dom Casmurro teve de contar a própria vida a fim de lhe dar certa unidade (atar-lhe as pontas) surgiu-lhe na velhice. “Em que espelho ficou perdida a minha face?” — poderia ser a epígrafe dessa narrativa. De modos diferentes, a literatura nos ajuda a perceber que “entre o sono e o sonho, entre mim e o que em mim é o quem eu me suponho corre um rio sem fim”. Vejam o meu caso: eu comecei a escrever este texto para falar de pessoas que, já sendo Dom Casmurro, não reconhecem em si o Bentinho que certamente foram; ou que, já sendo Dom Casmurro, cristalizaram em seu comportamento características típicas de Bentinho (e nunca mais as deixaram). Mas a esta altura vejo que me perdi nas vagas desse mar e, agora, já não há espaço suficiente para introduzir esse assunto tão complexo. Peço paciência. Tentarei ligar as duas pontas desse assunto em uma outra ocasião. Enquanto isso, estou garimpando em sebos em busca da História dos Subúrbios.
(Publicado no Diário do Rio Doce, em 26.01.2016)
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