Alguns anos depois que deixei a Promotoria
Alguns anos depois que deixei a Promotoria de Águas Formosas, MG, o prefeito que pontificou durante boa parte de minha passagem por lá foi à rádio da cidade dar uma entrevista. Lá pelas tantas, ele, lembrando-se da época em que governara o município, fez uma referência um tanto desonrosa a mim. O jornalista lhe perguntou a respeito dos processos que ele ainda respondia na Justiça por conta de suspeitas de malversação de dinheiro público. Como não quisesse entrar no mérito das acusações, saiu-se com essa: “Essas ações ainda estão tramitando porque naquela época tinha aqui na cidade um promotorzinho que pegava no meu pé etc”.
Querendo ver o circo pegar fogo, alguém chegou a me enviar um CD com a entrevista, para que eu, se fosse o caso, interpelasse o falastrão por conta dessa menção desrespeitosa.
Enquanto tinha a correspondência nas mãos e apertava o CD com os dedos, o rosto do prefeito surgiu na minha imaginação, rindo discretamente (não era de mim que ele ria, mas de qualquer coisa engraçada que torna a vida mais leve). Naquela ocasião, anos depois de eu ter deixado a Promotoria de Justiça, já um pouco mais maduro, eu já tinha uma noção mais veraz do que representava, no imaginário das pessoas que elegeram o prefeito (quer dizer, dos ouvintes da rádio), o ingresso de um menino de 24 anos numa comunidade mais ou menos estável de 18 mil habitantes relativamente isolada de qualquer aglomeração urbana relevante, levantando o dedo nos ambientes públicos, altivo e seguro de ter sido constituído, pelo termo de posse, em um instrumento bem talhado a serviço da Justiça Social (com letras maiúsculas).
Abri o envelope e, com as mãos sobre a mesa do gabinete, brinquei de fazer do CD a roda de um carro de bois (só que silenciosa) girando pesada, indo e vindo, sobre o chão batido das estradas de terra (a terra desolada que naquela tarde de prazos eu tinha que cultivar). Os processos que eu tinha sobre a mesa eram processos “federais”, nos quais as fantasias de revolução têm maior dificuldade de se assentar. O contraste entre o mundo real dos processos de improbidade que não andavam naquela comarca longínqua (a cidade, sob o olhar dos homens, dos cachorros e das janelas, alheia à minha ansiedade, andava devagar como os processos), o carro de bois imaginário (que me lembrou Alberto Caeiro), a fala do prefeito na entrevista da rádio, meus prazos judiciais sobre a mesa; o contraste entre tudo isso e o antigo ímpeto de fazer e fazer e fazer que levei comigo de Belo Horizonte a Águas Formosas quando tomei posse me paralisaram por um instante. Foi então que eu me dei conta de que algo em mim havia morrido – o que as fantasias (e os devaneios) daquele jovem imberbe tinham de revolta e de solidão.
Eu não assisti ao formidável enterro dessa quimera – e já não era possível ressuscitá-la (e nem eu mesmo quereria, pois “se uma figura vai murchando, outra, sorrindo, se propõe”).
O que compreendi naquele instante foi que o prefeito fizera referência a um fato concreto (defunto, mas tão real como a lembrança de um parente que já se foi); e o fizera de um jeito leve e socialmente aceito — enfim, fez o que eu provavelmente faria no seu lugar.
Enfim, a solução para aquele impasse entre tomar parte em uma batalha judicial de versões e de interpretações e a renúncia pura e simples eu a encontrei na maquinazinha de triturar papel – através da qual o CD foi definitivamente mandado para o mundo das (meras) possibilidades.
Passei o resto do dia rindo sem razão definida. Uma multidão de imagens ia e vinha – e eu rindo. Entre imagens bem conhecidas (algumas já desbotadas — por exemplo, a imagem do prefeito rindo discreto), surgiam em semente, como propostas, outras tantas coisas boas – que, é certo, ocupavam com pleno direito o espaço do cadáver já suficientemente honrado com um funeral modesto em que ninguém chorou. Requiescat in pace.
Que alívio! A paz às vezes vem de uma maquinazinha de triturar papel… Ótimo! Muitas reflexões nesse texto! Muitas.