Como meu encontro com o prof. Olavo de Carvalho transformou a minha vida de estudos
Como já disse em outro lugar, no panorama das duas famílias que se uniram no casamento dos meus pais não conheço nenhuma vocação intelectual desenvolvida. Durante seis ou sete anos da minha vida recém-iniciada vivi impactado pelas idas-e-vindas do Sol e da Lua da minha infância. Como disse a psicanalista Françoise Dolto, logo vi minhas referências mais caras apontando para ‘dois polos norte’. A busca de orientação: essa era a tônica de minha adolescência. O caminho foi — e ainda é — longo e tortuoso. Com a carroça na estrada, vejo-me hoje, em meio a milhares de livros, buscando um diálogo possível com Platão, Plotino, Santo Tomás de Aquino, Eric Voegelin, Julián Marías e, por questões profissionais, com alguns filósofos do direito contemporâneo. Colocar-me hoje na pretensa posição de diálogo com esses gênios, admito, é uma ousadia imperdoável. Mas é preciso um pouco de coragem e um mínimo de autoconfiança. Enfim, é preciso começar de algum ponto. Já me sinto recompensado por não tê-los por completos estranhos. Talvez já fosse aceito por alguns deles como aprendiz de auxiliar de seus sub-secretários.
Nem sempre foi assim, que fique claro. Nem sempre tive as melhores referências quando buscava alguma orientação em meio ao quase-caos das minhas questões informes. Seja como for, o que encontrei foram as referências possíveis, que bem ou mal me trouxeram até aqui. Entre o antes e o depois de tudo, porém, houve um rio que passou em minha vida. Um fenômeno que buscarei testemunhar nesta breve narrativa.
A verdade é que, a mim que palmilhava vagamente uma estrada de Minas pedregosa, a máquina do mundo se entreabriu. Comecemos pelo ano de 1997. Aprovado, com agradável surpresa, no vestibular para a Faculdade de Direito da UFMG, eu comecei minha vida de estudos dividido entre os grandes compêndios de Direito Penal e as leituras de psicologia e sociologia que caíam como migalhas da estante de livros de meu pai, que a esta altura já havia perdido muito da curiosidade intelectual que a dimensão de sua biblioteca poderia indicar. Um estágio acadêmico no segundo período da faculdade, como um raio de sol no meio da noite da minha adolescência tardia, me indicou o caminho da minha vocação: eu descobri que seria promotor de justiça. Muito bem. Aproximadamente três anos de estudos intensos foram suficientes para que fosse aprovado em três bons concursos: procurador federal da Advocacia Geral da União, promotor de justiça em Minas Gerais e procurador da República, que é ainda hoje o concurso público mais difícil do país. Mas a preparação para os concursos não ocupava, efetivamente, a parte mais importante das minhas energias. Ainda sentia uma privação, faltava algo mais genuíno, que os artigos de lei não regiam, que as garantias fundamentais não garantiam. Faltava um sentido a tudo aquilo. A estante de livros do meu pai e, principalmente, os sebos belorizontinos eram o manancial onde eu buscava, junto com um ou dois amigos em parcial comunhão, dar vazão a esse desejo. Vivia, meio inconscientemente, sob a influência de uma frase de Goethe, que li aos dezessete anos no romance filosófico O Mundo de Sofia, do escritor norueguês Jostein Gaarder. Cito-a de memória: “Quem de três mil anos não dá conta, vive à mercê dos dias e do tempo”. Traduzindo para o bom português: se você não souber quem foram e o que pensaram os homens que fizeram a nossa civilização, você será um fantoche manipulado por forças que jamais entenderá. Eis aí, em estado puro, todo um projeto de vida. Tratava-se de uma invulgar pretensão de obter o domínio possível de todo o conhecimento humano. Sem saber, já tinha uma noção da ‘busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência — e vice-versa’, que segundo o prof. Olavo é a definição mais perfeita da Filosofia. Uma vez que permanecia sob a influência mais ou menos permanente desse grande achado, saí à busca de iniciar o trabalho. Como executar esse projeto? Tudo o que eu tinha eram os livros do meu pai, os livros da biblioteca da Faculdade de Direito e os sebos de Belo Horizonte.
Sem uma orientação naquela selva escura, porém, isso tudo era um quase-nada. Alguns dos meus textos, escritos nessa época de estudos, atestam com segurança: eu já estava contaminado com a cultura de quinta categoria que era oferecida aos jovens da classe média brasileira na década de 90. Achava-me uma pessoa muito culta por ter lido José Saramago (naquela época, para o meu gosto, o cume da literatura de língua portuguesa). Contentava-me, garboso, em mencionar os dois livros de Gabriel Garcia Márquez que já havia lido. Maravilhava-me com a leitura do Livro dos Abraços, de Eduardo Galeano. Altivo, citava o Veias Abertas (‘há em nós um silêncio que muito se aproxima da estupidez’). Naquela época, Mário Quintana era poeta. Osho, um líder espiritual. Marcelo Rubens Paiva, um escritor de mão cheia. Os juristas do catálogo das grandes editoras brasileiras eram os maiores gênios filosóficos que eu era capaz de imaginar. Hoje vejo que uma das poucas coisas que valia a pena em minha biblioteca era um livrinho chamado ‘Otimismo em Gotas’, que ao lado de algumas puerilidades de fazer donzela chorar, trazia citações dos Evangelhos, de Confúcio, de Chateaubriand, de Shakespeare e de Goethe. Fiquei muito impressionado quando li nesse livro, aos meus dezesseis anos, a consolação que Jesus Cristo deixou a seus apóstolos: “No mundo tereis aflições, mas tende bom ânimo. Eu venci o mundo”. Sim, Cristo havia vencido o mundo, mas eu estava ali me entorpecendo com as mais altas bobagens literárias e filosóficas de que o século XX fora capaz de produzir sob a falsa aparência de cultura e de filosofia.
Porém, sempre há os amigos e já existia a internet. E tudo isso era muito bom. Na segunda metade da faculdade, no ano de 2000, um colega imprimiu um artigo e mo deu de presente, dando a entender, implicitamente, que tudo aquilo era fruto de sua própria pena. Um título curioso: Da Contemplação Amorosa. Havia nele muitas citações e um tanto de erudição. Definitivamente, aquilo tudo não combinava com a figura do meu amigo. Busquei no Cadê e encontrei o autor do texto: Olavo de Carvalho. A frase de abertura da página, que está lá até hoje, foi a confirmação de tudo o que eu vinha vivendo no limiar da consciência há mais de dez anos: Sapientiam autem non vincit malitia. O mal não vence a sabedoria. Está lá no Livro da Sabedoria 7,30. Vinte séculos de cultura cristã e aquela verdade me chegava pela primeira vez pelas mãos de um amigo ardiloso — que por sua vez recebeu a dica em uma troca de e-mails com o insosso jornalista Artur Xexeo. São as tais linhas tortas. Nesse primeiro encontro, fiquei naquela inusitada página por pouco mais de uma hora, conhecendo melhor aquele senhor que pelas mãos de um amigo insincero passaria a ser parte importante da minha vida sete anos depois. Ainda na página inicial, a frase que sempre lia em tom respeitoso — uma frase do próprio autor: “Somente a consciência individual do agente dá testemunho dos atos sem testemunha, e não há ato mais desprovido de testemunha externa do que o ato de conhecer”. Li, inteiro, o ensaio Da Contemplação Amorosa. Estava evidente: era um grande texto. Porém, eu não podia negar: em razão de minhas limitações, eu não havia entendido praticamente nada. Apesar de não ter absorvido com louvor o conteúdo, fiquei fascinado com aquele jeito de escrever e de se comunicar. Espiando outros textos, logo percebi que Olavo de Carvalho era um ponto fora da curva de tudo o que eu já havia visto. Sua personalidade vocacionada à polêmica erudita reverberou forte no meu peito já cansado de assistir às bobagens que os falsos mestres diziam de cima de suas caixinhas de tomate. Textos agradáveis, com um humor lançado aqui e ali pelas mãos de um bom semeador. Apesar da imensa erudição dos textos, eu tinha a sensação de que estava na sala de visitas do meu apartamento ouvindo um tio falar sobre os grandes temas deste nosso mundo tão interessante. Foi um grande achado, esse site. Um oásis. Um fermento. Era a oportunidade que eu finalmente tinha de dar conta dos três milênios de Goethe.
Naquela época, meu maior interesse intelectual era aquilo que eu imaginava ser a engrenagem dos relacionamentos humanos, a dinâmica das relações sociais. Minha gagueira, posto que leve, incendiava meu peito (acostumado às tensões de um divórcio conflituoso em casa) com questões metafísicas que ocuparam os melhores cérebros durante toda a história do pensamento humano. Porém, sem orientação, eu não passava, mesmo nos momentos de maior proveito, das leituras de Eduardo Galeano e de Eric Berne.
Desde esse primeiro contato fortuito com o prof. Olavo de Carvalho, através de seu site, até tornar-me efetivamente seu aluno passaram-se sete anos. Sete longos anos. Nesse período terminei a faculdade, passei no concurso para promotor de justiça, morei um ano e meio em Águas Formosas, MG (um município de 17 mil habitantes no nordeste mineiro), assumi a Procuradoria da República em Belém, PA, e em Volta Redonda, RJ, conheci minha futura esposa, e me mudei para Campinas, SP. Foi aí, na terra natal do professor, que voltei a ter contato com seu trabalho.
Comecei então a comprar a coleção História Essencial da Filosofia, editada pela É Realizações. Eram aulas impressionantes! A cada encontro, dezenas de novas ideias, de descobertas, de nomes de pensadores que a partir de então passaram a fazer parte da minha vida imaginativa. A ideia de que ‘um triângulo já tinha três lados antes mesmo da criação do mundo’ ficou em minha cabeça por muito tempo, intacta, suspensa no ar. A explicação do ânimo do verdadeiro filósofo, também. ‘O filósofo não tem necessidade de convencer as pessoas de sua filosofia. Se o interlocutor não quer ouvir o que o filósofo tem a dizer, ele pára de falar na mesma hora, sem ressentimentos’. O Projeto Socrático era, finalmente, o meu próprio projeto. Sem mais, era preciso concretizá-lo em minha vida. Projeto, logo existo. Planos de estudo de execução impossível: era isso o que eu mais gostava de fazer. Desenhar tabelas, com datas e metas a serem cumpridas com a possível pontualidade. Havia dado certo na preparação para os concursos públicos. Por que seria diferente com a Filosofia? Terminei de assistir a todas as 32 aulas do História Essencial. Estava mais preparado para a vida de estudos. Isso era uma certeza, como dois e dois. Estava estampado na minha testa. A História da Filosofia já não me era completamente estranha. Tinha uma lista de cem livros para garimpar em sebos e na Estante Virtual. E um enorme plano de estudos para cumprir, que abrangia a História das Civilizações (incluindo a História do Brasil), a História da Filosofia, Psicologia, Economia, Antropologia, Sociologia, História da Ciência, Crítica Literária, Religiões Comparadas, Ciências Tradicionais, História da Arte (com ênfase na História da Música), Gramática da Língua Portuguesa, Língua Inglesa, Língua Francesa e muita literatura. Além disso, correndo por fora, estavam dezenas, senão centenas, de ‘livros ótimos’ — inclassificáveis, porém indispensáveis. A ideia de domínio do conhecimento humano ainda estava comigo, como uma sombra. Eu tinha de dar conta de três milênios.
Perdido entre tantos projetos parcialmente fracassados e poucos resultados visíveis, comecei então a sentir falta de um método. Acostumado a um ensino burocrático, sentia necessidade de etapas claramente definidas e de alguém com quem pudesse sanar as muitas dúvidas que surgiam a partir das leituras. Foi por isso que em 2007 prestei vestibular para cursar Filosofia na Unicamp e na PUC-Campinas. Com as aulas da primeira eram invariavelmente no turno da tarde, e como eu tinha mais o que fazer nesse horário de trabalho, matriculei-me na segunda. A experiência que tive em quase dois semestres letivos foi trágica. Já contei essa tragédia em outro texto, em que falei sobre Os meses que passei na Faculdade de Filosofia da PUC-Campinas.
Uma coincidência cósmica então aconteceu. Eu vinha ouvindo com grande interesse os episódios do programa semanal de rádio do professor, o True Outspeak. Ouvia os episódios antigos, um a um, e os novos, na mesma semana em que eram disponibilizados. Foi aí que minha profunda decepção com a Faculdade de Filosofia coincidiu com o anúncio, para daí a alguns meses, do início do Curso Online de Filosofia, o COF, projetado para durar cinco anos. Uma maravilha. Naquela mesma ocasião, estavam abertas as inscrições para o curso Introdução ao Método Filosófico (2008), que seria ministrado em Colonial Heights. Preparei-me com antecedência e fui assistir às aulas. Foi aí que pude então conhecer pessoalmente o Prof. Olavo de Carvalho e parte de sua família. A primeira aula desse curso, que ocorreu em uma sala de aula improvisada em um quarto de hotel, foi para mim um daqueles pontos altos de que fala Louis Lavelle, momentos privilegiados nos quais parece que o universo se ilumina. Apesar de ser muito acessível, o professor me pareceu bastante reservado. E agiu com particular impaciência ao responder a algumas perguntas que eu próprio formulei ao longo das aulas. De todo modo, era, no conjunto, um doce de pessoa. Full time. O que só tornava mais caricatos os palavrões que ele soltava — eu bem já sabia — em seus programas de rádio. Os poucos alunos que fomos ao curso passamos uma semana muito agradável. De minha parte, essas aulas foram essenciais porque precipitaram uma significativa mudança nos meus estudos e nos meus costumes. Decidi que era necessário ter uma visão panorâmica de todas as mais importantes obras da Filosofia Ocidental, com data de publicação e um índice temático de cada uma; que era necessário conhecer o desenvolvimento e a relação de cada uma das obras entre si, pois a Filosofia é na verdade ‘um grande diálogo’; que se quisesse ser um homem maduro deveria sondar a origem das minhas crenças, uma a uma, pelo método da anamnese. Voltei decidido a limpar minha cabecinha de todo o lixo cultural de que ela havia sido, até então, preenchida. Como fazem os protestantes recém-convertidos, doei pilhas de livros e de discos. Antes, advertia o donatário da vez: não presta, mas se quiser pode levar. No lugar das bobagens de sempre, comecei a preencher a minha biblioteca com autores de estatura: Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino, Mestre Eckhart, A. Sertillanges, José Ortega y Gasset, Mortimer Adler, Mário Ferreira dos Santos, Thomas Merton, Eric Voegelin, Leo Strauss, Bruno Snell, Giovanni Reale, José Ferrater Mora. Na literatura, Homero, Virgílio, Petrônio, Horácio, Dante, Miguel de Cervantes, Shakespeare, Dostoiévski, Alessandro Manzoni, Walter Scott, Henry James, Honoré de Balzac, Marcel Proust, Camilo Castelo Branco, José Geraldo Vieira, Manuel Bandeira, Graciliano Ramos, José Lins do Rego. Era, já naquela época, o mínimo que eu precisava ter em casa para não ser considerado um imbecil.
A partir dessa época, tudo o que li e assisti do prof. Olavo foram como ‘notas de rodapé’ ao curso Introdução ao Método Filosófico, sob cuja luz ainda hoje caminham meus estudos. São notas, mas são abundantes. Muito abundantes. Fui a dois outros cursos na Virgínia: Introdução à Filosofia de Eric Voegelin (2009) e Metafísica e a estrutura do ser (2011). Certamente não tiveram o mesmo impacto que o primeiro. Mas foram muito proveitosos: o primeiro serviu para que eu fizesse excelentes amizades; e o segundo, para que eu convivesse, por alguns dias, com o Padre Paulo Ricardo de Azevedo Júnior.
Porque já tinha algum conhecimento da obra do prof. Olavo e o conhecia um pouco mais que a média das pessoas que se arvoravam em críticos de seus hábitos, sempre achei muito curioso que alguns anti-alunos do professor se interessassem tanto, justamente para criticá-lo, pelos aspectos mais laterais de toda a sua, por assim dizer, performance pública: o Olavo fala palavrão, o Olavo é mal-educado, o Olavo é carola, o Olavo é astrólogo, o Olavo é filósofo autoproclamado, o Olavo contestou Newton. E eu pensava, com justiça: esse povo não tem mais o que fazer, não? Vejam só o que acontecia na época do Orkut. A comunidade “Eu odeio o Olavo de Carvalho” foi transmutada, após algumas frustradas sessões de para-psicanálise, em “Olavo de Carvalho nos odeia”. Pouco antes do início do programa de rádio, nas segundas-feiras às 20h, essa comunidade de críticos do professor estava frequentemente mais abarrotada de gente que a comunidade ‘oficial’ dedicada ao programa. Ficavam todos ali, cogitando entre si quais seriam ‘as bobagens do dia’. É muito desamor para o meu pobre coração! Mas como Virgílio disse a Dante: não nos preocupemos com esse povo. Sigamos nosso caminho.
Do outro lado da coisa toda, após algumas doses de anamnese, eu já me considerava alguém capaz de fazer escolhas sensatas. Decidi que precisava de um artifício para me auxiliar em meus momentos de meditação filosófica. Como gosto de ritos de preparação, o cachimbo passou a ser a companhia perfeita para os momentos de silêncio contemplativo entre uma leitura e outra. Para purificar minha imaginação musical de tanto lixo ouvido por três décadas, passei a ouvir com maior frequência as sinfonias e algumas das sonatas de Beethoven (em especial a Sonata Patética), a Sinfonia Júpiter e alguns concertos para piano, de Mozart (principalmente o Concerto n. 20) e o Concerto Italiano, de Bach. Depois de mais de cem horas de audição do programa True Outspeak eu já podia ser considerado algo próximo de um conservador. Eu procurava rastrear os indícios de comunismo que se haviam apossado de minha mentalidade juvenil. Buscava ler autores conservadores. Se porventura me caía nas mãos um autor meio moderninho, meio Escola de Frankfurt, eu torcia o nariz e colocava o meu pé direito atrás. Não tenho a clara consciência de quando foi que fiz essa opção pelo conservadorismo. No fundo acho que não fiz nenhuma opção em sentido estrito. Parece-me hoje que já nasci assim, com essa necessidade de conservar o que é bom e de rejeitar o que não presta. A vida, e as escolas brasileiras, é que vão entortando a nossa cabeça.
Sigamos. Matriculei-me no Curso Online de Filosofia e lia todo o material que era postado no Seminário de Filosofia. Já tinha tido acesso, por arquivos que circulavam entre os alunos insiders, aos cursos que foram sendo disponibilizados ali: Teoria do Estado I e II, Ética (parcial) e Educação Liberal. Ouvia cada aula com os ouvidos atentos. Devo ter ouvido, no conjunto, até hoje, cerca de 1,2 mil horas de aulas e programas do professor. Meu Ipod Touch, com seus mecanismos de rewind ’30 e velocidade 1,5x, tornavam a tarefa mais agradável e executável em meio às muitas tarefas de um dia de trabalho atribulado.
O COF havia começado. E estávamos lá, firmes. A perspectiva de começar um curso de longo prazo, sob o atento guiamento do professor, era muito interessante. Alguém comentou que, nos primeiros meses, éramos mais de mil alunos. Hoje se fala em três mil. O objetivo do professor era muito claro: a formação de uma elite intelectual no Brasil, que carece de algo parecido desde meados do século passado. Para isso era necessário começar por reunir aqueles que ‘amam as mesmas coisas e que rejeitam as mesmas coisas’, na definição de amizade de Santo Tomás de Aquino. Um empreendimento civilizacional. Em primeiro lugar, seria preciso civilizar as revoltosas partes de nossa burrice interior. Aos neófitos, muita humildade. E muita paciência também (reconheço que nem sempre a tive em medida suficiente para suportar a incerta desorganização com que o site do Seminário de Filosofia era tratado pela equipe. Eram muitos os problemas — e ainda são, em menor medida — com o download dos arquivos, atrasos para o começo das aulas, perguntas que não são respondidas e um fórum de discussões tétrico. A fixação do professor com a certidão de nascimento do Barack Obama, em seus programas de rádio, costumava respingar no COF. Isso às vezes me entediava. Mas nada disso, entretanto, chegou a diminuir meu interesse pelas aulas, que venho assistindo com muito proveito até hoje).
Uma das grandes vantagens de ser aluno do prof. Olavo é o universo de autores a que ele lhe dá acesso. A lista é enorme. Algumas já foram compiladas pelos alunos mais aplicados e podem ser acessadas no Seminário de Filosofia. Já são duas as editoras que se dedicam, quase exclusivamente, a lançar as obras indicadas pelo professor. Foi através do professor que conheci o Padre Paulo Ricardo de Azevedo Júnior, o prof. Luiz Gonzaga de Carvalho Neto e o prof. José Monir Nasser. Os dois primeiros pavimentaram meu retorno à Igreja, de quem fiquei tão distante por tantos anos, imerso em teorias esotéricas e autoajudas de variada ordem. Através do terceiro pude compreender, com alguns frutos, a delícia de ler e de falar sobre literatura imaginativa, herança que certamente me acompanhará a vida inteira.
O meu retorno aos sacramentos é, sem dúvida, o acontecimento mais notável de todo esse período. É algo que paira sobre tudo o mais. Fui me acostumando a confiar na Igreja através do prof. Olavo de Carvalho. Aprendi a importância de praticar verdadeiramente a religião cristã com o prof. Luiz Gonzaga de Carvalho Neto. Aprendi a amar a Igreja e compreendi a real necessidade de buscá-la como depósito da Tradição com o Padre Paulo Ricardo de Azevedo Júnior. E fui aprendendo o que era ser discípulo de Jesus Cristo, com a possível devoção e reverência, com a leitura da vida dos santos e com os amigos que fiz em Campinas, SP. Com esse retorno à Igreja, houve uma segunda renovação de meus interesses, que foram ficando mais restritos embora mais universais (espero que entendam).
Pois bem. Lá pelas tantas, quando o COF já ia às mil maravilhas, noticiou-se a inauguração do Instituto Olavo de Carvalho, em Curitiba, PR, que buscava ser uma extensão do trabalho do professor, por iniciativa de alguns de seus mais antigos alunos. A proposta inicial era muito boa. Passei a assistir a alguns dos cursos disponibilizados pelos dedicados professores. Quando naturalmente busquei me aproximar um pouco mais do projeto, o Instituto Olavo de Carvalho sofreu uma mutação — após um mal-entendido encoberto de uma treva espessa que não foi desvanecida — e passou a se chamar Centro de Estudos Landmark. A história do rompimento do instituto com o professor ainda haverá de ser contada, nesta ou na próxima vida, quando a tudo veremos face a face. Algumas histórias que ouvi deixaram-me de cabelo em pé. Como nem o professor nem ninguém explicou o que realmente ocorreu, reforcei minhas orações antes de começar os estudos e passei a ouvir as aulas, de um e dos outros, através de um senso crítico um ponto acima do usual. Mas para tudo o que nos acontece Deus nos reserva um bem. Esse evento mal-explicado reforçou uma coisa essencial, que nunca deveríamos nos esquecer: que há um tanto de miséria em todos e em cada um de nós. Só Deus é bom. Restabelecida essa grande verdade para o bem de todos, foi possível prosseguir os estudos, com um olho no padre e o outro na missa.
Aproximadamente no terceiro ano do COF, como um bom amante do que é bom, pareceu-me uma boa coisa começar a defender o mundo da maldade. Pontualmente, aqui e ali. E defender por escrito, que é mais interessante. Após alguns rounds, logo fui percebendo que as discussões em que eu eventualmente entrava não costumavam dar bons frutos. Aquelas travadas contra progressistas, petistas ou simplesmente comunistas era um falar às paredes. As discussões que acabavam acontecendo intra muros eram deprimentes. Briga de irmãos, sangue do nosso sangue. De saco cheio de perder tempo e fosfato com os ‘pitboys’ do Facebook, vi que não havia nascido para aquilo. Todo mundo tem mais o que fazer na vida.
Outra coisa que me deixou bastante entediado foram as discussões que o próprio professor travava com nulidades absolutas, com zeros à esquerda, com subnitratos do pó de bosta do cavalo manco de um soldado de um exército derrotado. Tudo me indicava que se alguém deveria fazer aquele serviço sujo, certamente não era tarefa para o maior filósofo brasileiro vivo. É dar uma honra imerecida a pós-adolescentes metidos a besta. Alguma razão o professor deve ter para fazer isso, pensava. Não encontrava nenhum motivo razoável, porém, para que eu próprio acompanhasse aquelas trocas rasas de ofensas irônicas que, vindas de um lado e de outro, ameaçavam igualar um gigante a um punhado de smurfs desnutridos.
É também com esse mesmo espírito nada animador que assisti aos muitos alunos que foram renegando tudo o que aprenderam com o professor. Alguns deles, recentemente, vinham montando dossiês pretensamente explosivos com detalhes nada interessantes da vida passada do professor Olavo e de alguns de seus filhos. Fofocas, inconfidências. Coisa de gente baixa, sem moral. Obra porca de revoltados, de ressentidos e de recalcados. Tudo o que fizeram é imoral, ilegal e não presta. Essa atmosfera em torno do professor infelizmente tornou-se muito insalubre mesmo a mim que estou acostumado a viver, por vocação e por dever profissional, em ambientes com algum nível de confusão e de conflito. Apesar de tudo, as aulas do COF, gravadas, prosseguem com a mesma qualidade e com o mesmo grau de excelência de sempre. O mesmo se diga dos dois cursos anuais que o professor profere desde 2006 em Colonial Heights (que há poucos anos vêm sendo disponibilizados, para compra e acesso online, pelo Seminário de Filosofia). Por fim, há também os novos livros, que a Vide Editorial vem lançando, e que são a oportunidade de se encontrar com o prof. Olavo em condições mais saudáveis do que aquelas dos ringues que por vezes se montam nas redes sociais. Talvez esses atritos com ex-alunos e com seus anti-admiradores fanáticos seja inevitável diante da tarefa civilizacional que o professor se propôs, para a qual sua exposição pública é inevitável. Ou talvez sejam os frutos naturais de seu temperamento. Seja como for, o meu afastamento do ambiente de discussões não significou, em nenhuma dimensão, o afastamento das aulas e do estudo sistemático em casa, que continuou seguindo as diretrizes que adotei no final de 2013. Que diretrizes foram essas?
Já um pouco crescidinho, imaginei que já fosse o tempo de começar a tentar os alimentos sólidos: parti para a leitura sistemática dos diálogos platônicos seguida do estudo da obra de Aristóteles (com a ajuda imprescindível dos comentadores e de alguns professores e amigos socorristas em caso de necessidade). Ao lado disso, continuaria a tarefa de ler ‘as trezentas maiores obras da literatura universal’ e os ‘livros ótimos’, que eventualmente façam referência aos pontos de interesse que vão naturalmente surgindo. Continuei com as práticas de piedade diárias cujo hábito adquiri há algum tempo, graças ao bom Deus. Todo esse trabalho vem mostrando aos poucos os seus frutos. Lentamente. Mas são frutos reais. Aos poucos Deus vem revelando a utilidade de todo aquele esforço intelectual em que já venho me debruçando há mais de uma década. Comecei a ter um juízo mais veraz sobre mim mesmo: minhas potências e minhas limitações. Passei a ter maior clareza a respeito do sentido do meu trabalho no Ministério Público e do que deveria modificar se quisesse ter o meu próprio respeito (como disse Georges Bernanos, ninguém tem efetivamente medo da morte; o que tememos é morrer como idiotas). Passei a compreender a necessidade de contar a minha própria história — e vi que minha infância, apesar de tudo, foi mais bonita que a de Carlos Drummond de Andrade. Mas principalmente comecei a perceber, com a ajuda também da psicanálise, que escrever pode ser um grande negócio. É catarse, é descoberta. É uma oferenda agradável a Deus, o uso sincero e cuidadoso da palavra. Entendi finalmente uma verdade que já me havia sido soprada aos ouvidos há onze anos pela escritora belohorizontina Ana Elisa Ribeiro: ‘Escrever ajuda a não-enlouquecer. Ou a enlouquecer por escrito, o que dá menos prejuízo’.
Tenho hoje em minha mesa de estudos e espalhados pelo escritório centenas de livros, empilhados por interesse. Sou aluno do prof. Olavo de Carvalho no COF. Sigo buscando a possível familiaridade com os três milênios de Goethe. Hoje tenho a paz que por muito tempo busquei (é uma paz em meio a constantes batalhas, mas ainda assim é paz). Minha esposa e eu damos graças a Deus por nosso casamento. Pelos merecimentos de Jesus Cristo, pedimos a Deus que nos conceda a graça de ter filhos. A vida segue. Na Procuradoria da República, 80% do meu trabalho consiste em investigar e buscar a punição de deputados, prefeitos, lobistas e empresários que fazem misérias com o dinheiro público. Às vezes conseguimos, às vezes não. De todo modo, seguimos vagarosos, de mãos pensas.
Ter conhecido o prof. Olavo de Carvalho foi para mim fonte de grandes oportunidades de crescimento e de descoberta. Uma vez, em um dos cursos a que assisti em Colonial Heights, o professor falava da necessidade de se criar no Brasil um grupo de pessoas preparadas para a vida intelectual. Para entrarem em discussões com conhecimento de causa, para terem algo a dizer diante das grandes questões nacionais e, principalmente, para serem testemunhos vivos daquilo que dizem. Segundo ele entendia, não via outra oportunidade de começar a formação de grupos dessa espécie a não ser entre seus próprios alunos. Um aluno (foi o Fábio Lins) perguntou algo assim: “Professor, a que o senhor atribui a reunião dessas determinadas pessoas em seus cursos? Em outras palavras, por que nós temos a chance de estar aqui, nos aprofundando em temas tão importantes, enquanto outras pessoas estão lá se afundando em doutrinas vãs?”. A resposta do professor foi inusitada: “Sorte. Não encontro outra explicação para isso nesse momento”. Naturalmente, eu não digeri bem a resposta. Até porque ela continha evidentes desdobramentos que não foram explicitados. E ela ainda hoje paira sobre minha cabeça como um grande ponto de interrogação. Sorte.
O prof. Olavo de Carvalho é um grande mestre — provavelmente o maior mestre vivo que eu terei tido. Agradeço a Deus pela oportunidade de tê-lo conhecido e de não estar entre seus detratores (com quem, pelas minhas próprias forças e por minha presunção tosca, eu bem mereceria estar). Que São Miguel Arcanjo, cuja memória a Igreja celebra hoje, seja o refúgio do professor contra a maldade e as ciladas do demônio. E que Deus continue abençoando sua numerosa família e o seu profícuo apostolado. Vale.
Linda história. Quem dera eu ter tamanha força e benção divinas.
Bacana sua desenvolvimento, bonita sua história.
Identifiquei-me em vários momentos, dentre eles na reconciliação com à fé, com a nova ordem mental de que vai se instaurando aos poucos, com algumas aquisições e aspirações.
Estou quase terminando o curso de Direito (9ª fase), não vejo a hora de poder começar o COF e me deter em leituras profícuas, estudar de verdade – chega de empulhação; não aguento mais tanto marxismo disfarçado.
Dei uma passada rápida em sua página e encontrei algumas artigos interessantes que gostaria de desenvolvê-los, procurei o campo “contato” em sua página e não o encontrei, sendo assim gostaria que me escrevesse para mantermos contato, se possível, por gentileza, escreva para: [email protected].
Cordialmente,
Luis R. Merten
Caro Bruno, cheguei ao seu nome por acaso, ou por sorte como talvez diria o Professor Olavo. Em meus estudos e busca por temas que me são caros, no mesmo par de dias vi pela primeira vez um dos seus vídeos e por ele um dos vídeos do grande José Monir Nasser. Ambos me impressionaram, ainda que por motivos diferentes, mas confesso que minha maior alegria for ter ‘descoberto’ duas pessoas de grande qualidade com quem de alguma forma eu poderia dialogar e interagir. A dificuldade de encontrar autores, pares ou colegas lúcidos com que interagir sobre a realidade como ela é sempre me incomodou e ver que de fato existe luz e sobriedade além do Professor Olavo e outros raros me trouxe grande satisfação. Sou aluno do COF há algum tempo e tenho em meus estudos fonte de prazer e contato com a divindade.
Obrigado pelo depoimento e por compartilhar sua inspiradora jornada. Siga firme.
Abraço,
Everton Lacerda
Gratidão, é esse o sentimento que tenho pela pessoa do mestre Olavo de Carvalho, a partir dos seus vídeos um mundo de conhecimento se abriu para mim.Me identifiquei com seu texto, obrigada por compartilhar um pouco da sua alma com a gente.
Caro Bruno,
A algum tempo acompanho seu canal no Youtube, onde busco dicas e orientações de estudo. Hoje felizmente aportei neste site, sendo este artigo o de primeira leitura!
Em seu relato, identifiquei alguns pontos em que tangem a minha própria história!
Abç,
Cristiano