Os meses que passei na Faculdade de Filosofia da PUC-Campinas
Já formado em Direito, decidi, em 2007, iniciar um curso universitário de Filosofia. Já me ocorria há alguns meses a ideia de estudar, sob a ótica jurídica, o nosso sistema de educação. Senti falta, já nas primeiras leituras, de certo embasamento filosófico. Como morava em Campinas, SP, inscrevi-me nos vestibulares da Unicamp e da PUC-Campinas. Fui aprovado na primeira fase da Unicamp, mas como a matrícula para a PUC ocorreu antes da segunda fase da Unicamp – e como as aulas nessa universidade eram, em sua maioria, à tarde, horário de minhas audiências judiciais -, acabei optando pela Pontifícia Universidade Católica.
Oitenta por cento da minha turma era de seminaristas que iniciavam sua formação visando à ordenação sacerdotal católica. Muito bem. Eu já vinha assistindo a alguns vídeos da coleção História Essencial da Filosofia, do prof. Olavo de Carvalho. Portanto já tinha uma noção do que a filosofia era e daquilo em que se foi transformando ao longo dos séculos.
A boa amizade que fiz com alguns dos alunos foi o único bem que trouxe dessa experiência que durou aproximadamente oito meses. O primeiro semestre foi absolutamente frustrante. Em razão disso, matriculei-me, no segundo, apenas nas disciplinas que me pareceram mais interessantes. Mesmo com essa seleção, a minha capacidade de resistência, nessa segunda fase, não durou sequer um mês. Eis alguns pontos do itinerário que foi da matrícula ao trancamento:
– O professor de História da Filosofia I, apesar de muito gentil e competente em sua área de Filosofia da Educação, uma vez escalado para a disciplina com a qual não tinha afinidade, resolveu passar o semestre a assistir aos seminários promovidos pelos próprios alunos. O que a turma aprendeu sobre Pitágoras, Heráclito, Parmênides, Sócrates, Platão e Aristóteles foi mais ou menos um resumo do que cada aluno, por sua vez, aprendeu sozinho sobre Pitágoras, Heráclito, Parmênides, Sócrates, Platão e Aristóteles lendo, no máximo, meia dúzia de páginas da História da Filosofia do Giovanni Reale. Depois que tranquei matrícula acabei indicando ao professor as aulas do História Essencial da Filosofia. Provando sua boa-fé e interesse, ele me contou que passou algumas das aulas para os alunos, que, segundo comentou comigo depois, ficavam rindo e comentando o número de cigarros que o prof. Olavo de Carvalho fumava em cada aula.
– A professora de lógica, especialista em Nietzsche, não tinha a exata compreensão de que não estávamos, ali, em uma aulinha de quarta série. Começava cada aula preenchendo o quadro, em silêncio, com uma dezena de frases e lições. Concedia vinte minutos para os alunos copiarem o conteúdo em seus cadernos – enquanto ia tomar um ar fora da sala. Quando voltava, lia as frases e as explicava. Alguns alunos faziam questão de copiar com exatidão, no caderno, as sentenças mais importantes da aula. De vez em quando pediam que repetisse tudo de novo (vamos combinar que os alunos também não colaboravam para subir o nível da aulas). Ela, satisfeita, repetia tudo, pacientemente, e esperava o tempo que fosse preciso para que todos copiassem tudo em seus cadernos. Com frequência gostava de certificar-se de que todos haviam copiado tudo direitinho. Nunca indicou qualquer livro ou texto para complementar as lições, que ministrava exclusivamente com base em um manual de sua autoria. A maioria dos alunos, aplicados e obedientes, adquiriu a obra com muito gosto.
– O professor de Introdução à Sociologia deu as mesmas aulas que dava há trinta anos: Marx, Durkheim e Weber. Ele gostava muito do ‘positivismo’. Levou um dia um radinho para a sala, onde passou um sambinha tosco sobre Auguste Comte. Não preciso dizer que era antiamericano, que dizia que o que aconteceu na União Soviética não foi o comunismo de Karl Marx e que em Cuba não havia mendigos. Não adiantou que eu falasse: “Professor, mas eu Cuba nós não estaríamos aqui assistindo a esta aula e nem o senhor teria toda essa liberdade para falar o que diz aos alunos”. Provavelmente ele continuou dando as mesmas aulas de sempre nos semestres seguintes e assim vai continuar até se aposentar. Ele também tinha o seu próprio livro-texto, que circulava entre os alunos.
– Ao professor que me pareceu, naquela cidade em ruínas, um dos mais dispostos a dar-me um parecer técnico, pedi uma opinião sobre um livro do filósofo Mário Ferreira dos Santos – como que para puxar assunto e desenvolver uma conversa sobre temas que me interessavam. Depois de dois meses, fui à sua sala procurá-lo. Devolveu-me o livro sem tê-lo lido, indicando-me, para a consulta, um professor de origem portuguesa que passaria duas semanas na PUC-Campinas. É que a busca da verdade tem limites.
– O professor de Antropologia Teológica era um sacerdote de certa idade. No primeiro dia de aula, perguntei-lhe a respeito da ementa da disciplina, que ele distribuíra aos alunos. “Professor, embora a disciplina se chame ‘Antropologia Teológica’, a ementa fala ‘do estudo da relação do homem com o mercado e os males da sociedade consumista’. Não tratará da relação do homem com Deus, de religiosidade?”. Em sua resposta, ele, desconcertado, desconversou… Esse mesmo professor queria que os meninos de dezoito anos, os nossos futuros padres, começassem a ler Friedrich Nietzsche no primeiro período da Faculdade de Filosofia.
– Havia uma disciplina cujas aulas eram quinzenais, no meio das tardes de terça-feira. Para mim era um momento bem difícil, não só porque eu costumava ter audiências judiciais à tarde, mas também porque se tratava de uma disciplina que buscava ambientar os alunos à universidade: O que é uma universidade? Como tirar o maior proveito dos estudos? O professor, um sacerdote de tênis, calça jeans e camisa aberta, promovia algumas dinâmicas meio-bobas. Falava em flexibilidade e em atenção ao aluno, mas quando precisei justificar uma ausência por conta de uma tarde de audiências judiciais, as portas se fecharam: não havia possibilidade. Maravilha.
– Com tantas desilusões vividas entre as quatro paredes da sala de aula, eu cheguei a pensar que minha matrícula na Faculdade de Filosofia da PUC-Campinas talvez se justificasse pela facilidade de acesso à Biblioteca, que até tinha bons livros. Logo vi, porém, que ela era frequentada por um coletivo de bárbaros que a adotavam como uma extensão da cantina, o que a transformava, quase sempre, em um local onde o estudo era impraticável. Por diversas vezes, eu tentei. Tentei de verdade. Ia para a biblioteca ler e escolher bons livros para minhas pesquisas. Porém, em praticamente todas as oportunidades em que ali estive, seja de manhã, à tarde ou à noite, tive a incômoda sensação de que estava em pleno pátio de recreio, entre pós-adolescentes conversando sobre a vida, fofocando, rindo alto e até – por incrível que pareça – conversando (ruidosamente também) sobre algum tema relacionado a seus trabalhos escolares. Minha capacidade de concentração, na época, era baixa. Lembro-me que por duas ou três vezes, pedindo que falassem (ou rissem ou gritassem) mais baixo, tentei obter dos circunstantes um acordo de cooperação. Mas logo percebi que era eu — e não eles — que estava no lugar errado.
– A gota d´água que fez transbordar o copo da minha insistência e me conduziu diretamente à Coordenação do Curso para trancar a minha matrícula para nunca mais voltar foi uma aula de Filosofia da Arte. O professor, empolgadíssimo com a ideia, ficou duas aulas (1h40min) traçando no quadro umas tabelas de 3×3, 4×4 e 5×5. Nas tabelas 3×3 funcionava assim: na primeira coluna, colocavam-se palavras com vocação para sujeito da frase – geralmente substantivos (pois o poeta não estava inspirado nesse dia); na segunda, verbos e, na terceira, substantivos, adjetivos ou adjuntos adverbiais, à escolha. Então o professor estimulava os alunos a fazer alguns poemas através do cruzamento dos dados das três colunas. A teoria, segundo se expressava, era de vanguarda. Julgava-a muito digna de apreço. Fomos apresentados a alguns de seus frutos, colhidos ao vivo na sala de aula: ‘O outono fechou-se límpido’, ‘A flauta atrasou-se pela manhã’, ‘Maria sorriu para a pedra’, ‘As matemáticas quebraram-se lentamente’…
‘A filosofia foi para o brejo’, pensei. E essa acabou sendo a minha última aula de filosofia na PUC-Campinas: A secretária da coordenação do curso me deu um formulário de trancamento de matrícula que preenchi sem remorsos. Ponto final.
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